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sábado, 23 de outubro de 2010

prosseguimento do livro "O Protagonista Oculto dos Anos 60" on line



P.S. Para quem se dispor a comprovar no que resultou meu debute literário titulado de: "O Protagonista Oculto dos Anos 60" basta contatar "Livros de Biografias - Memórias Sollus - Livraria Virtual" ou "www.sollusdistribuidora.com.br/ ou seu endereço Rua Airí, 24 - Tatuapé - S Paulo - SP. 03310-010. Meu desejo é que todos tenham
uma leitura prazerosa; e me queiram bem, que não faz mal a ninguém.
Na hipótese de querer matar a curiosidade e não se dispuser a comprar meu livro?...Sentir-me-ei honrado em ter como leitor do mesmo online neste meu blog. Afinal, essa sempre foi minha intenção. É obvio. Portanto, sintan-se a vontade no aconchego de seu lar, brindando com sua maviosa atenção este meu livro, também online. Na eventualidade de vir a gostar de minha modesta maneira de me expressar nas paginas deste livro? Só me dará prazer. Caso contrário, antecipadamente deixo minhas desculpas. Nem sempre é possível agradar a todos.
                           PS. Se houver interesse de acompanhar este blog para se inteirar dos capítulos resultantes deste meu primeiro livro, - agora online?- Sentirme-ei lisonjeado. Apenas convido-o a assinar como meu seguidor. (espero não estar pedindo demais.) Ha... Se quiser postar algum comentário? Ele também será bem vindo. Apenas peço de antemão; que leve em consideração minha pouca experiência no trato com literatura, e que em boca pequena, amenize minhas falhas dizendo aos outros que ninguém é perfeito, e que esse meu erro quer ortográfico ou outro qualquer, se deu por um lapso imperceptível de minha parte, o qual nem deve ser levado em conta ok? Afinal de contas errar é humano, e "perdoar é divino". Bjos.







                    O PROTAGONISTA OCULTO DOS ANOS 60


                    escritor: Primo Moreschi - Distribuido por "Livros de Biografias - Memórias Sollus - Livraria Virtual" ou Sollus Distribuidora de livros, Rua Airí, 24 - Tatuapé, fone (11) 29420337 ramal 135
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                                           Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
                                           Moreschi Primo
          M845p                           O Protagonista Oculto dos Anos 60 - Primo Moreschi. -
                                           Campo Grande  , MS: Ed.Oeste, 2008.
                                                302 p. : il. : 23 cm.
                                             
                                                  ISBN: 978-85-88523-52-4


                                                  1.Moreschi, Primo. 2. Autobiografia - Músicos. 3. l. Título


                                                                                                              CDD (22) 780 92                        
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                         Wagner Benatti (Bitão) Se encarregou de assinar um primeiro parecer sobre este livro com as seguinte frazes:
                          Duas pessoas numa só: o amigo Primo Moreschi e o amigo e músico Joe Primo. Este foi, e é, realmente um dos pioneiros do Rock'n roll brasileiro que nos seus primordios dos anos 1950 ainda era praticamente só  instrumental.
                          Foi assim que pelas mãos habilidosas, musicalidade consagrada e tenacidade deste brilhante músico surgiram duas das mais cultuadas e respeitadas bandas ( que na época dizia-se conjunto musical) do rock instrumental nacional: "The Jet Black´s e "Os Megatons". Muitos dos jovens músicos que iniciaram seus aprendizados naqueles longinquos  e criativos anos 1960 tiveram como espelho essas duas bandas, sendo que "Os Megatons" apesar de nunca terem tido um sucesso avassalador como outras bandas da época, sempre foram cultuadissimos por todos os músicos pela qualidade instrumental e virtuose de seus integrantes. Lendo este livro - que na minha opinião é uma das obtas mais abrangentes do panorama musical jovem dos anos 1950 - 1960 - poderão entender exatamente o que estou dizendo, até porque tenho o orgulho de ter párticipado juntamente com Joe Primo da última formação dos Megatons no finalzinho dos anos 60. Leiam atentamente cada linha, cada detalhe deste ótimo livro e descobrirão muitas histórias nunca antes reveladas deste cenário musical do então iniciante rock'n roll brasileiro.
Bom divertimento! - Wagner Benatti (bitão)
                                 Guitarrista- vocalista
                                 da banda "Pholhas"
                                                       xxx
                 Uma seqüência de acontecimentos do mundo artístico nos finais dos anos 50 e inicio de 60; com revelações inusitadas, desconhecidas dos remanescentes e aficionados do Rock e Twist no Brasil. Neste livro, Primo Moreschi, (Joe Primo), sita uma serie de fatos vivenciados de âmbito nacional, merecedores de atenção especial das autoridades e quem de direito, no sentido de sanar o mal que certas leis, e ações impensadas causam ao ser humano de boa índole, trabalhador, cumpridor de seus deveres e obrigações; que, em tendo caráter ilibado, sofre, obrigado que é de ter que encarar verdadeiro mar de agruras impostas por essa sociedade mesquinha, exclusivista, fria e calculista, demagoga e oportunista: com raras exceções que chegam a passar despercebidas.
                   
                                                    “Sinopse”

Capitulo – I
A primeira infância
Pág. 01

Capitulo – II
Vida de órfão
Pág. 02

Capitulo – III
Vida de pensionista
Pág. 06

Capitulo – IV
O desenho – Profissão e arte
Pág. 12

Capitulo – V
Nasce o Artista
Pág. 25

Capitulo – VI
A caminho do Auge
Pág. 34

Capitulo – VII
A luta e o punhal pelas costas
Pág. 41

Capitulo – VIII
No Hospital – O começo do fim
Pág. 46

Capitulo IX
Preparando a volta
Pág.49

Capitulo – X
Retorno à batalha
Pág. 52

Capitulo – XI
Tons e Megaton´s – conhecendo o sucesso
Pág.59

Capitulo – XII
Provando now-how e se retirando
Pág.72

Capitulo – XIII
Fotografia, espiritualidade e amor
Pág. 74

Capitulo – XIV
A grande aventura na selva
Pág. 82

Capitulo XV
Parênteses – pausa para reflexão
Pág. 106

Capitulo XVI
A sorte e o casamento
Pág. 116

Capitulo XVII
Convite para uma nova vida
Pág.122

Capitulo XVIII
Vida de marceneiro
Pág. 125

Capitulo – XIX
Rinha de galo e briga de gente
Pág. 129

Capitulo XX
Parêntese II – reflexão nunca é demais
Pág. 134

Capitulo XXI
Gratidão, solidariedade e caldo de galinha,
não fazem mal a ninguém.
Pág. 137



                                                      Apresentação


1.   Nem defunto autor nem autor defunto, felizmente, tampouco com a pretensão de fazer-me de grande escritor, sempre tive em mente, no entanto, num momento em que estivesse inspirado, de cabeça fresca, escrever um livro. Em síntese, algumas nuances de minha infância, adolescência e juventude, ricas que foram de fatos pitorescos e situações inusitadas que merecem um relato simples, de alguém que viveu e encarou a vida da maneira como esta lhe foi apresentada. Narrando minhas venturas e desventuras – que não foram poucas – confronto essas experiências com afirmações de certos “donos da verdade”, que vivem parafraseando ensinamentos para justificar determinado comportamento de crianças e adolescentes. Enfim, um depoimento de quem, mesmo com dificuldades, soube tirar dos obstáculos o próprio modo de superá-los, fazendo cair por terra certas teorias “modernas” sobre como os acontecimentos influenciam o caminho e as escolhas dos jovens.

CAPÍTULO I
A primeira infância
Pág. 03
        Filho de italianos: lembro-me de que todos os dias, ao cair da tarde, ficava ansioso à espera de meu pai retornar do trabalho – ele era carpinteiro – porque, quando voltava do seu serviço, passava em um armazém vizinho de casa, sagradamente, tomava um aperitivo (rabo de galo) e comprava um doce de maria-mole. Não sei se o doce era grande demais ou minhas mãos muito pequenas (eu devia ter cinco ou seis anos), mas não conseguia segurar só com uma das mãos aquela delícia, cuja lembrança me dá água na boca até hoje. Ao chegar a casa, ele pedia para minha mãe deixar de fazer o serviço que estivesse fazendo porque ele o terminaria. Meus pais – que eu lembre – não me batiam. Salvo uma única vez que minha mãe, não sei por que cargas d’água, abaixou um calção que eu usava e me deu umas chineladas. Fiquei uns bons bocados chorando, deitado de bumbum pra cima no chão do jardim que havia em nossa casa, sentindo os grãos de areia que desprenderam do chinelo de minha mãe e grudaram em minha pele. Nessa época, morávamos na Rua Canuto Saraiva, no bairro da Mooca, em um sobradinho. Todos os dias, às 18 horas – hora do “Ângelo” – eu e minha irmã, a qual chamava carinhosamente de Mariínha, íamos até a nossa vizinha, dona Linda para ouvir o rádio e rezar a Ave Maria. Dona Linda tinha uma sobrinha que também se juntava a nós para rezar e, após brincar, comer uma maçã vez ou outra. Quando ela me oferecia um pedaço, eu, bobo, dizia que não gostava, sem imaginar que, por conta disso, a menina não mais me ofereceria. E eu sempre ficava com vontade de comer a fruta.
Lembro-me também, vagamente, de um vizinho, mais ou menos da minha idade, de nome Henrique – Henriquinho –, que, de vez em quando, juntava-se às brincadeiras. Fazíamos de conta que no jardim de minha casa, por entre aquelas plantinhas e capins, havia onças, macacos, Tarzan e muitos bichos criados pela nossa fértil imaginação infantil. Vez por outra, montavam um circo em um terreno baldio à distância de mais ou menos uns 100 metros da nossa casa. Eu e Mariínha fazíamos de tudo para assistir aos espetáculos, ora vendendo pipocas para o pipoqueiro, ora entrando como penetras por baixo da lona. Também o neto do dono do circo, que fazia o papel principal, de mocinho, no seriado que aos domingos encenavam, colocava-nos para dentro – o danado estava de olho em minha irmã. Ao término do seriado, ele ficava se insinuando para ela, mas meu outro irmão, Antônio, não permitia que ninguém namorasse minha irmã, porque ela tinha apenas nove ou 10 anos e era a única filha entre nove irmãos.
Outra coisa de que me lembro é que, vez por outra, meu irmão de nome Urbano reunia-se com mais quatro colegas para ensaiar as músicas que compunham o repertório de um conjunto de faroeste – muito em moda na época – do qual ele fazia parte, cujo nome era Rancheiros da Paulicéia. Vez por outra, apresentavam-se na Rádio América de São Paulo, trajados a caráter, ou seja, de cowboy, arrancando muitos aplausos da platéia, pela afinação e qualidade de seus componentes. Meu pai também cantava e, mesmo não tendo dois dedos, que por infelicidade perdera quando trabalhava em uma marcenaria, conseguia se acompanhar ao violão. Meu irmão Luiz era muito arteiro. Quando não estava em casa lendo gibis – coisa que meus pais não aprovavam – estava aprontando alguma traquinagem. Perto de casa, havia campinho, por sinal muito perigoso para brincadeiras, porque abrigava torres de transmissão de alta voltagem. Certo dia, meu irmão Luiz, influenciado pelos gibis, que não deixava de ler nem quando estava almoçando (hora sagrada), fez um pára-quedas do pano de um guarda-chuva velho e se atirou de cima de um dos lances da torre de alta tensão. Por verdadeiro milagre, não se quebrou todo. Como se não bastasse, um coleguinha seu, que devia ter a mesma idade de meu irmão (Zinho), também subiu em um dos lances da torre de alta tensão e a uma altura aproximada de quatro metros, com um cigarro na boca e um arame numa das mãos, cismou de acender o cigarro com uma das faíscas que o mesmo provocaria. O resultado não poderia ser outro: recebeu um enorme tranco, seguido de um estrondo com faíscas, pra ninguém botar defeito. Não sei precisar se o menino se safou dessa.
Existia também, naquela época, um parque de diversões de nome Xangai, que dentre múltiplos divertimentos, apresentava um espetáculo de calouros cujo animador chamava-se Zé Estaca. Não havia uma só apresentação de que Mariínha participasse cantando que não ganhasse o primeiro prêmio. O mérito disso tudo se devia à afinação e ao timbre de voz, combinados com sua beleza. Mamãe passava horas fazendo cachos em seus cabelos, com um ferro quente, deixando-a parecendo uma bonequinha. Nessa época, meus irmãos Sebastião e Orlando já eram casados.  Portanto, nossa casa era composta da seguinte forma: José (papai), Concheta (mamãe), Agostinho, Urbano, Antônio, Luíz, Maria, Geraldo e Primo, que sou eu, - o caçula. Meus irmãos casados moravam em suas respectivas casas. Minha mãe, de repente, adoeceu. Pelo que me lembro, em seu quarto, estavam meu pai, meus irmãos e não sei precisar quem mais. Apenas me lembro de ter ouvido minha mãe, deitada na cama, dizer num tom de voz bem baixo para que cuidassem do Priminho e da Mariínha. 

CAPÍTULO II
Vida de órfão. 
         Pág.04    
Algum tempo depois, eu estava sentado em cima de um muro, ao lado do portão de entrada de minha casa, e várias pessoas entravam ou saíam, não sem antes passar a mão carinhosamente em minha cabeça. Nesse dia, ganhei do meu irmão Urbano um caminhãozinho de madeira (o primeiro e único presente que eu havia ganhado). O porquê disso tudo? Minha mãe estava sendo velada na sala de minha casa. Tenho para mim que tudo que se passava à minha volta não tinha tanta relevância quanto no tempo em que minha mãe vivia. Passados alguns meses, meu pai estava fazendo um vigamento e sofreu uma queda de cima do telhado, ferindo a cabeça e indo parar no hospital. Após alguns dias, veio também a falecer. Desse dia em diante, nossa família, tal qual uma nau sem rumo no mar revolto, tentou encontrar o caminho que deveria ser tomado, com o intuito de preservar nossa união. Todos, em comum acordo, decidiram que morar em uma pensão resolveria em parte nossos problemas. Pela idade, somente eu e minha irmã não tomamos parte da decisão. Foi então que meu irmão Orlando levou-me para morar consigo. Sua casa constituía-se de um quarto e uma sala e, fora, um banheiro coletivo. Na verdade, um cortiço. A cozinha, era dividida com sua sogra, que também morava lá.
               Quando cheguei, a mulher dele acomodou-me para dormir em cima de duas cadeiras da sala, que me serviram de cama. O poder aquisitivo de meu irmão não era dos maiores, levando-se em conta que era barbeiro. A esposa de meu irmão tratava-me como se eu fosse seu empregado. Dava-me, a seu bel-prazer, às vezes, repreensões por coisas que eu não havia feito. Era tão exagerada e infundada em suas acusações, que até sua própria mãe a censurava, intercedendo a meu favor. Quando Orlando voltava do trabalho, ela era a falsidade em pessoa. Simulava brincadeira comigo, abraçava-me, enfim, mudava da água para o vinho. Ao retornar para o serviço, meu irmão nem sequer podia imaginar como eu era tratado. O tempo foi passando.  Para se ver livre de mim, ela passou a inventar coisas inacreditáveis a meu respeito, para que meu irmão me internasse num orfanato ou instituto disciplinar. Caso não o fizesse, ela o ameaçava de separação.
      Orlando comentou o ocorrido com meu irmão Sebastião, também casado. (Ele havia ido cortar o cabelo na barbearia na qual Orlando (Lando) trabalhava), Sebastião lhe disse que, se o problema fosse esse, ele o resolveria de imediato, levando-me para morar em sua casa. “Eu vivo com minha mulher em uma casinha de meia água na estação de XV de Novembro, mas, se for pra salvar teu casamento, levo o Priminho pra morar lá em casa até quando ele quiser”- foram suas palavras. Dito isso, Sebastião levou-me somente com a roupa que eu estava vestindo, não sem antes dizer umas verdades (que a ética me impede de citar) para a mulher de Orlando. E, assim, lá fui eu para casa de Sebastião. Após algum tempo – não sei precisar quanto –, chegamos de trem à Estação de XV de Novembro. Saltamos do trem, andamos uns 20 minutos mais ou menos e entramos num armazém para comprar alguns alimentos. O dono do armazém perguntou para Sebastião quem eu era, ao que ele respondeu prontamente que eu era seu irmão e iria levar-me pra morar com ele, dizendo: “onde come um, comem dois, comem três”. Em seguida, o dono do armazém complementou. “E quando ele crescer vai ajudá-lo nas despesas da casa, não é?”, ao que meu irmão retrucou: “Aí você se engana. Eu vou criá-lo e, quando ele for adulto, que siga o caminho que Deus achar que ele deva seguir.”
Ao chegar a sua casa, a mulher de Sebastião, de nome Noêmia, perguntou meio surpresa, o que eu estava fazendo ali. Meu irmão lhe contou o acontecido, e ela, sem esboçar nenhum gesto que desse a entender que não havia gostado, apenas disse: “Ah... é? Então, tudo bem”. Desse dia em diante, a convivência em família não poderia ser melhor. Tudo corria às mil maravilhas. Meu irmão tinha dois filhos, mas nem por isso eu era tratado com indiferença. Alguns acontecimentos dessa época até hoje me vêm à mente, de vez em quando. O primeiro diz respeito a uma vizinha do meu irmão, uma senhora morena, que, de vez em quando, vinha pedir para minha cunhada um copo de “esprito” (álcool) para acender a espiriteira e “quentá um leite”. Mal ela começava a ir embora, olhava dos dois lados, sorrateiramente; se não houvesse ninguém olhando, bebia uns goles do álcool e lá ia ela de pés descalços, a passos largos, para seu barraco de pau-a-pique coberto de sapé, de um cômodo – meia água. De vez em quando, dona Maria, a vizinha do “esprito”, ia para o mato cortar varas para cercar seu terreno e me levava junto. Eu ficava admirado com a quantidade de varas que ela conseguia carregar num feixe enorme que amarrava com cipó. Lembro-me também de fatos interessantes. Diante do nosso lote, cujo terreno era bem inclinado, havia um mato rasteiro, um misto de capim barba de bode com braquiária. Devido a essa inclinação do terreno, dona Maria conseguiu por duas vezes correr e escapar de uma cobra coral ou caninana, - não recordo bem o nome. Ela dizia que o bicho a perseguia, mas o engraçado disso tudo eram os gritos que soltava enquanto corria morro abaixo em disparada, com medo da cobra.
Outro fato interessante e inesquecível foi ter conhecido também um vizinho, que morava a uns cinco lotes de distância (uns 50 metros), um “preto velho”, estatura média, cabelos e barba comprida bem branquinha, chamado senhor João. Para melhor descrevê-lo: era exatamente aquela figura de um preto velho fumando cachimbo, tão usado em calendários. Ele colocava lenha no fogão caipira – que ele mesmo construíra, bem como sua casa de pau-a-pique coberta de sapé – e ficava de cócoras, pitando seu cachimbinho de barro, reacendendo-o de vez em quando com um graveto que tirava de seu fogão, transmitindo uma paz digna de ser perpetuada, pelo menos em minha lembrança. Aquela imagem calou tanto em minha memória, que, toda vez que vejo um preto velho, não resisto ao ímpeto de olhar seu rosto para ver se parece com o senhor João que conheci. Mas outra coisa também me marcou com relação a essa pessoa. Certa vez, ele colheu uma fruta num brejo, que existia ali nas proximidades de casa, e me deu para comer. Segundo o senhor João, essa fruta chamava-se banana do brejo. Até hoje, não encontrei ninguém que tivesse conhecimento de alguma fruta com as características daquela que ele me deu. Parecia-se com uma espiga de milho, um pouco mais grossa, com seus grãos deliciosamente doces, que a gente comia da mesma forma que se come o milho na espiga.
Marcantes, também nessa época em que eu morava com meu irmão Sebastião, foram às noites em que, devido à falta de espaço existente na casa e minha “cama” ser um colchonéte no chão de terra batida, eu acordava no meio da noite com formigas por todo meu corpo. - esse fenômeno chamava-se correção. Era um deus-nos-acuda. Meu irmão e minha cunhada jogavam cinzas do fogão em cima delas para espantá-las, enfim, lá se ia a noite inteira sem dormir. Passado algum tempo, outro irmão meu veio me visitar.  Era o Antônio, a quem chamávamos carinhosamente de Toninho. Do terreiro de casa, avistei Toninho chegando lá embaixo, na estradinha que dava acesso a nossa casa. Fiquei tão contente que saí correndo, em disparada, ao seu encontro. Ele me abraçou fortemente, rodopiando comigo no seu colo, colocou-me no chão, agachou-se para ficar na minha altura. Ao mesmo tempo em que me fazia algumas perguntas, das quais não me lembro, segurava minhas mãos, apertando levemente umas saliências gordinhas que eu sempre tive em cima dos meus dedos. Nesse instante, notei que ele chorava.
Depois de conversar um bom tempo com Sebastião, Toninho levou-me para morar com ele. Lá vou eu novamente viajar no trem da Central do Brasil, com destino à capital de São Paulo. Toninho, nessa época, morava numa pensão na Rua Conselheiro Nébias, dividindo com outro pensionista um quarto onde havia duas camas. O companheiro de quarto do Toninho trabalhava à noite, então sua cama ficava vaga e eu podia ocupá-la. Mas, bastava começar a clarear o dia, eu tinha que levantar, pois era a vez do outro dormir. De manhã, meu irmão levava-me até um bar em que eu tomava uma média de café com leite e um pãozinho com manteiga para, em seguida, pegarmos um ônibus rumo ao bairro do Brás, onde Toninho trabalhava. Vez ou outra, ele me levava a uma pensão da Rua João Bohemer, no Brás, para almoçar (era um sobrado bem antigo). Não sei explicar bem ao certo, mas creio que Toninho deve ter “cortado um doze” para ficar comigo. Digo isso porque, solteiro, sem ter quem o ajudasse a cuidar de uma criança, fez das tripas coração para me cuidar.
Toninho, então, ajeitou as coisas para eu morar numa pensão, na qual já estavam morando outros quatro irmãos, pela ordem decrescente de idade, Agostinho, Urbano (tecelão), Luís (retocador de retratos), Geraldo (empregado em uma fábrica de calçados) e Mariínha, que trabalhava numa fábrica de ampolas. Ela vivia no mesmo quarto de meus irmãos, dividido apenas com uma folha de compensado, para ter um mínimo de privacidade – bem mínimo, diga-se, mas era a única alternativa encontrada naquele momento. Passei, a partir daquele instante, a morar com meus irmãos, como deveria ter morado desde quando meus pais faleceram. O único irmão solteiro que não estava morando com a gente era justamente Toninho, pois alugara um quarto juntamente com um colega, que, como ele, havia feito um curso técnico de rádio. Eles usariam o local tanto para o trabalho quanto para dormir. Meu irmão Geraldo, cujo apelido era Ladinho, trabalhava na frente da pensão onde morávamos. Ele encontrou um jeito para convencer o dono da fábrica de calçados a me empregar, alegando a necessidade premente de pagar minha pensão.  Não foi nada fácil – eu tinha dez anos incompletos, e a idade mínima para trabalhar naquela época devia ser entre 12 e 14 anos. Depois de muito relutar, o dono da fábrica acabou atendendo a solicitação do meu irmão, cedendo-me o emprego. Lá fui eu, com um macacão de cor cáqui, todo contente, trabalhar de ajudante de montador de bico. Para ser mais claro, meu serviço resumia-se a amolecer a ponta dos sapatos na parte interna, que, feita com raspa de couro e cola de polvilho, endurecia, havendo necessidade de amolecê-la para que a ponta pudesse ser recoberta com couro e o sapato, modelado. Para mim, esse serviço era o mais importante de todos. Eu me sentia como o maior dos profissionais do calçado (que se danasse o fato de eu ser menor e sem carteira assinada). O principal de tudo era que eu estava trabalhando, podendo pagar meu sustento na pensão com meu trabalho.        
CAPÍTULO III
Vida de pensionista
Pág.08
No primeiro contato que tive com a dona da pensão, não sei por que cargas d’água, alguém sugeriu que ela seria minha mãe, ao que imediatamente (com educação) descartei. Mesmo assim, não sei quem ainda disse: “Você não se lembra mais de sua mãe”? Educadamente, pedi que parassem com aquilo. Alguém devia ter imaginado que, como eu não tinha visto a saída do caixão de minha mãe para o enterro, eu poderia confundir e supor que outra pessoa – no caso a dona da pensão – fosse minha verdadeira mãe. Aquilo somente fez aguçar minha lembrança, que estava adormecida, fazendo-me sofrer novamente, sem nada falar pra ninguém, como era meu costume desde que fiquei sem meus pais. Como não há bem que sempre dure nem mal que nunca se acabe, no dia seguinte, lá estava eu pronto para trabalhar. Lá pelas nove horas – hora do lanche na fábrica de calçados – meu irmão Ladinho comprava uma garrafinha de guaraná cheia de café com leite, do qual ele tomava um pouco e me dava o restante. Nessa hora, outro companheiro de serviço, que trabalhava ao meu lado, procurava ensinar-me uma maneira de amolecer os bicos dos sapatos de uma forma que não ferisse tanto minhas mãos, e ao mesmo tempo ajudasse a acelerar o trabalho do montador de bicos, que dependia do meu serviço para finalizar as pontas dos calçados. Por mais boa vontade que o Edson – nome do companheiro de serviço – tivesse, não conseguiria seu intento, por conta de minhas frágeis mãos de criança. Passados uns dez dias, mais ou menos, desde que comecei a trabalhar, minhas mãos tinham tantos riscos e cortes que mais pareciam lixa para madeira número 15. Aos sábados, após o meio expediente da fábrica, eu não via a hora de chegar ao quarto da pensão. Meu irmão Luizinho, aos sábados e domingos, não perdia uma gafieira. Como ganhava muito bem na época, tinha uma infinidade de ternos de albene – um tecido fino, caro e muito em moda naqueles tempos – e vários pares de sapatos, feitos sob encomenda, em couro de pelica e cromo alemão. Eu ganhava, toda semana, uns trocados somente para engraxá-los. Esses trocados, na realidade, eram os únicos que eu possuía, pois o salário que eu recebia da fábrica se destinava todinho para a dona da pensão, ou seja, trabalhava apenas para comer e dormir, não sobrando um centavo  pra comprar um misero calção. O sapato que eu usava chamava-se alpargata roda – uma espécie de lona com solado de cordas.
Foi nesse meio tempo que passei a freqüentar o catecismo da Igreja Santo Antônio do Pari, para poder fazer minha primeira comunhão. Só que, para os meninos poderem receber a primeira comunhão naquele tempo, tinham de se vestir com terninho branco. Como não tínhamos dinheiro para comprá-lo, minha irmã Mariínha desmanchou um conjunto de roupa dela de albene branco e fez, com suas próprias mãos, meu traje. Diga-se, esnobei na cerimônia, com tudo que eu tinha direito, graças a ela. A única coisa que faltou foi uma fotografia, que todos tiraram para guardar de lembrança, menos eu, porque não podia pagar. Passados alguns dias, meu irmão Geraldo – Ladinho – inventou de seguir com um circo, - “Circo Arethuza”, deixando a pensão em que morávamos, bem como o emprego na fábrica de calçados, da qual também saí dias depois. Como eu tinha que trabalhar para pagar meu sustento, procurei e consegui outro emprego em uma esquina bem perto da pensão. Era uma distribuidora de palmito, onde meu serviço seria tirar as etiquetas velhas das latas de palmito, separar as latas que estivessem estufadas e rotular com rótulos novos as latas não estufadas. Novamente, o salário era todo destinado para pagar minha pensão.
De vez em quando, a dona da pensão, cuja religião era espírita, recebia a visita de uma irmã. Quando ela e seu marido chegavam, era mais do que certo que haveria reunião espírita. Sentavam-se ao redor da mesa de mais ou menos 12 ou 14 lugares, uma jarra de água, vários copos, toalha branca – igual a toalha de banquete – uma luz verde bem fraquinha (mal se via quem estivesse diante de si) e começavam os trabalhos. Um a um dos assentados à mesa ia sendo autorizado a receber seus guias (protetores). Passado o recebimento dos guias de todos, o presidente dava autorização para algum médium que quisesse manifestar algum outro espírito. Por essa época, meus irmãos, não sei precisar se por razões de aumento do valor da pensão ou outra razão, tinham a intenção de se mudar para outro lugar. E justamente nesse período, casualmente assisti a dita reunião espírita na casa. O primeiro médium a se manifestar foi exatamente a dona da pensão. Vou procurar descrever na íntegra como foi a manifestação:
Dona – (gemendo) “Aiiii... aiiiii... (pausa) aiiii
Presidente da mesa – “O que o irmão deseja?”
Dona – (com voz de quem está sofrendo) “Aiii... Primiiiinho...”
As pessoas que estavam do meu lado cutucaram-me dizendo para que eu pedisse bênção, pois era minha mãe que estava “baixando” na dona da pensão.  Nesse instante, eu estava que não agüentava mais de vontade de rir e também de fazer xixi. Mas, como me instigavam tanto para pedir bênção, resolvi satisfazê-los, sem me convencer nem por um instante de que minha mãe tivesse “baixado”. Para começar, minha mãe não me obrigava a pedir bênção quando era viva. A voz de minha mãe e seu sotaque, com o português “italianado”, eram pra mim inconfundíveis. O diálogo, após eu pedir benção foi assim:
Dona – (com voz bem fraca) “Deus te abençoe meu fiiilhoo.”
Presidente – “Quem está se manifestando no aparelho?”
Dona – “Coocheetaaa” =
Presidente – “O que você deseja do aparelho?”
Dona – “Uma preeeceee” (voz bem fraca, quase não se ouvindo)
Presidente – “Irmãos (pausa) vamos todos, em nome de Deus, fazer uma prece para aumentar a luz dessa irmã sofredora”
Todos rezam um Pai Nosso.
Dona – “Aiii... aiiii... Primiiinhooo, vocêêê...” Ela disse tão baixo, que o presidente interferiu, repetindo o que era falado quase sussurrando.
Presidente – “A irmã está pedindo que seus irmãos não façam o que estão pretendendo fazer e continuem morando aqui junto com você” (dirigindo-se a mim).
Dona – (voz bem baixa) “Tenho que iiirrr...”
Nesse instante, começaram a me cutucar de novo, para eu pedir bênção, porque minha mãe ia “subir”. Cansado daquela encenação, obedeci, pedindo mais uma vez bênção e me sentindo como um verdadeiro bocó de mola – termo usado pelos mais velhos para se referir a pessoas tolas. Depois desse ato, ocorreu o fechamento da sessão espírita, do mesmo jeito que havia começado, com cada médium recebendo seus respectivos guias protetores, dando uma tremenda tremida de corpo e voltando a ficar em silêncio, e o presidente dando como encerrados os trabalhos daquela noite. Todos tomam um pouco de “água benzida” e entabulam uma conversa, em torno de “quem recebeu quem”, que tem início com a irmã da dona perguntando a ela:
Irmã – “Sabe quem você recebeu?”
Dona – “Não, você sabe que eu sou médium inconsciente!”
Irmã – “Você recebeu a mãe do Primo”.
Dona – (com ar de surpresa) ”você está falando sério?”
Irmã – “Estou. E você sabe o que foi que ela disse?”
Dona – “Eu nem imagino! Mas me conte!”
Irmã – “Ela falou que os irmãos do Primo querem ir embora de sua pensão.”
Dona – (com ar de indignação) “É? (pausa)... não me diga... eu não acredito... o que ela falou mais, que eu estou ansiosa para saber?”
Irmã – “Ela pediu para o Primo dizer para os irmãos dele que é pra eles não irem embora daqui, não.”
Dona – “A mãe deles disse isso? (pausa) Bem... eu não vou dar nenhum palpite. Já que foi a mãe deles quem disse, eles que decidam!”
      Não contei para os meus irmãos o que se passou pura e simplesmente porque não acreditei em nada do que tinha visto e ouvido. O dia seguinte – um domingo – era especial pra mim. A Mariínha levava-me à matinê do cine “Rialto”. Lá íamos nós: eu, minha irmã e seu namoradinho, para assistir, além de um baita filme de bangue-bangue, ao seriado de Flash-Gordon no planeta Marte ou no planeta Ming. Saber que hoje em dia quase todas aquelas montagens dos filmes de Flash-Gordon transformaram-se em realidade deixa-me boquiaberto.
Por falar em boca aberta, nesse ano, no Domingo de Páscoa, minha irmã deu-me um ovo de chocolate tão grande que deu para comermos à vontade e ainda sobrou para uns dois dias, mais ou menos. Alguns dias depois, meus irmãos se mudaram. Cada qual seguiu para um lugar diferente. A pensão em que morávamos tornou-se grande demais porque somente eu e meu irmão Urbano ficamos. A dona da pensão reuniu sua família, composta pelo casal, dois filhos maiores de idade, duas moças com 18 e 20 anos e um menino apenas alguns meses mais novo do que eu, uns dez anos mais ou menos. Dessa reunião, decidiram que alugariam um sobradinho bem menor, re-alugariam um quarto nos fundos, e eu dormiria, provisoriamente, junto com o menino. Depois, meu irmão Luizinho, que havia se casado recentemente, iria me levar para morar com ele, aproveitando a oportunidade para me ensinar a profissão de afinador de retratos, reconhecida pelos fotógrafos como retocador. Nesse meio tempo, a etiquetadora de latas de palmito havia fechado. Tive de correr atrás de outro serviço, que desse o suficiente para pagar minha pensão, sem o que eu estaria na rua. Dei tanta sorte, que na Rua Silva Telles, bairro do Brás, avistei uma lojinha especializada em estampas em couro para forração de cadeiras. Pedi emprego. O dono, depois de muito pensar por causa de minha pouca idade, atendendo a um sinal favorável de sua mulher, acabou me aceitando para trabalhar. Passados 20 dias, mais ou menos, de tanto ter de me esconder da fiscalização do trabalho, o dono da loja, analisando o risco para me ter como seu empregado e receoso de fecharem sua loja, despediu-me, dizendo ser eu um de seus melhores empregados, mas a multa que levaria era muito grande e ele não podia correr esse risco. Chorei e dirigi os piores palavrões aos fiscais e suas respectivas mães, ao mesmo tempo em que eu ia andando em direção ao largo Silva Telles. Por estar com sede, entrei em uma lanchonete. Do meu lado, tomando não sei bem o que, um senhor meio calvo quis saber o porquê do meu pranto. Contei o ocorrido. Tive a maior surpresa com a reação daquele senhor. Ele praticamente fazia coro comigo, acompanhando-me nos xingamentos aos fiscais do trabalho. Em seguida, colocando sua mão sobre minha cabeça, categórico, para quem quisesse ouvir, falou alto e em bom som: “Eu não tenho medo dessa cambada de ladrões, você precisa trabalhar pra viver? Pois, a partir de agora, considere-se trabalhando novamente, na minha oficina, bem ali” – apontando com a mão – “na esquina da Rua João Theodoro com o largo Silva Telles, e quero ver quem vai se meter na minha frente pra impedir.” Naquele instante, eu passei do choro para o riso, contagiando todos os presentes, que até palmas bateram, dando-me parabéns.
O meu novo emprego era bem diversificado, porque se tratava de um misto de tipografia com corte e vinco – feitio de caixinhas de embalagens. A atenção e o respeito com que eu era tratado nesse emprego davam-me uma injeção de ânimo tão grande, que eu, agradecido, dava tudo de mim em retribuição. Uma coisa, porém, deixava-me intrigado: todos os dias após o almoço, eu via meu patrão surgir de uma portinhola embaixo do balcão em que trabalhávamos. Descobri com o passar dos dias que ali era exatamente o local em que as sobras dos cortes de papéis em geral ficavam depositadas, até serem transferidas para a reciclagem. Por serem bem limpos, os retalhos de papel ali depositados tornavam-se excelente local para uma sesta, um cochilo, explicado, portanto, que meu patrão ali descansava após o almoço. Dessas idas e vindas da pensão para o serviço, um dia encontrei-me com dois conhecidos, que residiam num apartamento diante do prédio do meu antigo emprego, na etiquetadora de latas de palmito. Eles eram uns três a quatro anos mais velhos que eu. Conversa fiada vai, conversa fiada vem; um deles convidou-me para andar de bicicleta. Disse-lhes que não só não tinha uma, como também não sabia andar de bicicleta. “Não tem problema”, disse um deles. “Nós também não temos bicicleta, nós apenas sabemos andar nelas. Portanto, como amanhã vai ser feriado, nós vamos alugar as bicicletas no Mesquita e a gente aluga também uma de mulher para você aprender a andar”. Obaaa! – eufórico – Então eu vou! Combinamos o encontro para o dia seguinte, em uma confeitaria da Rua Rodrigues dos Santos com a Rua Oriente. Quando cheguei, conforme combinado, os dois me esperavam, sentados no chão de uma das portas da citada confeitaria, na qual não havia ninguém: nem no balcão de atendimento, tampouco no caixa para recebimento. Os dois foram ao caixa, pegaram uns dois pacotinhos de moedas, enfiaram no bolso e chamaram-me para ir embora. Na minha cabeça, aquela confeitaria era do pai de algum deles. Somente mais tarde atinei que eles haviam roubado aquela padaria. Só que com tanta naturalidade, que me fez pensar tratar-se de um filho, tendo liberdade e autorização para pegar o que quisessem na hora que bem entendessem. Nunca poderia imaginar que aquilo fosse um roubo. Pior que era!  Creio ter sido a euforia que me causara a possibilidade de aprender a andar de bicicleta que me fez raciocinar daquela maneira. Eles alugaram as bicicletas como haviam dito. E eu, para aprender a andar, levei tantos tombos tentando me equilibrar, que só não desisti de apreender porque eu sabia que tão cedo não teria outra chance igual àquela. Então, mesmo me quebrando todo, aproveitei até o último segundo do aluguel de bicicleta obsequiado, para tentar aprender. Após a euforia do momento, senti-me no dever de contar tudo para o dono da padaria. Mas... Como sempre existe um mas... Fiquei com receio de ser mal-interpretado e sobrar pra mim o ônus da culpa. Pois não tendo ninguém para interferir a meu favor, sem pai nem mãe - solto no mundo, pensei melhor. Mesmo contra minha vontade, deixei de delatá-los. Porque como diz o velho ditado, “a corda sempre arrebenta do lado mais fraco”.
E assim o tempo foi passando, até que um dia meu irmão Luizinho apareceu lá na pensão e falou pra dona que iria me levar pra morar com ele. Com isso, aproveitaria para me ensinar sua profissão de afinador de retratos. Fiquei duplamente contente: primeiro, por aprender uma profissão e, segundo, por sair daquela pensão, na qual me sentia muito injustiçado em relação aos filhos da dona. Contente da vida, lá fui eu pra casa do “Zinho”, nome carinhoso pelo qual costumávamos tratar o Luís. Nessa época, fazia muito poucos meses que ele havia se casado. Sua casa se situava no bairro da Casa Verde, também na capital de São Paulo, e era composta de um quarto, cozinha e banheiro. Durante o dia todo e parte da noite, o Luiz trabalhava em seu próprio quarto de dormir porque, por trabalhar por produção, quanto mais ampliações ele retocasse (afinasse), mais dinheiro ganharia. Zinho montou seu cavalete de pintura nos pés da cama dele, onde também pôs uma prancheta improvisada – meu cavalete – para que eu pudesse aprender sua profissão. O quarto de dormir acabou se tornando o seu – nosso – ateliê. Meu irmão ouvia muito a Rádio São Paulo (enquanto trabalhávamos), que, naquela época, primava pelas novelas. Lembro-me de uma novela cujo artista principal chamava-se Ênio Rocha, considerado o maior galã aventureiro. Outra novela que também me marcou se chamava “Alameda das Acácias 29”, cujo tema é lembrado para os saudosistas: “Num galho de acácias amarelas, uma aranha fez a sua teia...” Ao relatar detalhes dessa que era considerada a emissora das novelas da capital paulista, faço-o; consciente de haver saudosistas que, como eu, tiveram o prazer de ouvir isso e as obras maravilhosas transmitidas, que ficaram gravadas em nossa memória, tais como: “As Mil e uma Noites”, por exemplo, e muitas outras, interpretadas pela nata da dramaturgia radiofônica da época. Como negar valores a atores do mais grosso calibre tais como Odair Marzano, Vilma Bentivenha e uma player de valores que enriqueciam sobremaneira a emissora das novelas “Radio São Paulo” -  que saudade. 
Pelo fato de haver muito pouco espaço físico em sua casa, Luizinho comprou uma cama de campanha, dessas que se usam nos campos de futebol, para tirar jogadores do campo quando eles se contundem; a qual seria armada na cozinha à noite pra eu dormir. Durante o dia, eu aprendia com meu irmão uma profissão, na qual muito cedo – modéstia à parte – tornei-me um especialista. Porém, involuntariamente, creio eu, devo ter acendido o estopim para acabar com a minha permanência na casa do meu irmão Luizinho. O fato de a cozinha da casa do meu irmão não ter forro, facilitava a entrada de um ou outro rato, a ponto deles passarem por cima do cobertor que me cobria, fazendo-me acordar assustado. Como toda criança, eu me apavorava, chutando os bichos com os pés por baixo do cobertor e gritando de medo. Com isto, talvez, eu tenha atrapalhado a vida íntima do casal – somente hoje posso entender isso.  E o desfecho não podia ser diferente: sobrou pra mim!  Disseram-me que meu irmão voltou lá na pensão, e, com lágrimas nos olhos, perguntou se existia vaga para eu voltar a morar lá, porque caso contrário, a mulher se separaria dele. Claro que havia vaga: quem em sã consciência rejeitaria receber por uma criança o mesmo valor que um adulto paga? Nem eu; ninguém rejeita.
Com o meu retorno à pensão, muita coisa mudou. Pra início, o lugar que eu teria de dormir seria embaixo da escada. Por se tratar de casa – sobrado – antiga, o que mais havia embaixo daquela escada era baratas. Como não tinha alternativa, encarei aquela parada, que, na pior das hipóteses, ainda era melhor do que ratos; mas – diga-se de passagem – marcou-me profundamente. Havia noites em que eu passava a maior parte procurando me safar das baratas. Uma vez, acordei com uma quase dentro de minha boca. E lá em cima, no quarto, o filho mais novo da dona da pensão, dormia tranqüilo em um quarto relativamente grande, com duas camas de solteiro e tendo espaço de sobra para acomodar outra. Quando eu tentava ver se pelo menos no chão do quarto dele eu poderia colocar um colchão? A resposta, após dialogarem, era curta e grossa. “Ele é pensionista. Se não esta satisfeito; que procure outra pensão”. Precisando do meu dinheiro e pondo banca. Quando alguma visita ou curioso perguntava quem eu era, a resposta da dona da pensão estava na ponta da língua. “Este aqui? É meu outro filho” – olhando-me com um olhar meigo – “não é mesmo”? E eu, com a cabeça baixa, mesmo sem dizer nada, com um sorriso amarelo, não desmentia. Se eu tivesse coragem e menos educação, com certeza questionaria na frente de todos a veracidade daquelas palavras. Como eu adoraria gritar alto e bom som pra quem quisesse ouvir: “Filho? Nuuuunca!” Uma mãe faz das tripas coração para proteger e privilegiar um filho, o que nunca acontecia comigo. Uma das provas  evidentes e relevantes disso? Era revelada na hora das refeições. Na divisão das partes de um frango, por exemplo! Sempre as piores partes, ou seja: a asa, pé, pescoço, tinham a direção certa do meu prato. Nunca uma coxinha, sobre coxa ou coxinha da asa. Peito então?... Nem sonhar. Esse somente iria para os pratos dos seus filhos. Na divisão dos bifes na hora da refeição?... Não havia a menor dúvida que o menor tinha o endereço certo de meu prato, e sem direito a repetir. A despeito de tudo isso, eu me dava por feliz, porque muitas vezes comiam demais, e não sobrava nem unzinho pra mim. A desculpa? Era minha velha conhecida. “Gente, acho que errei na conta dos bifes, que coisa heim! Bem, coloca aí no seu prato um pouco de salada e tudo bem vai.”
CAPÍTULO IV




O desenho – profissão e arte


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Ainda bem que existe a lei da compensação, porque meu irmão Luizinho, quando me ensinou a arte de afinador de retratos, indicou-me para trabalhar com um pintor de telas famoso, de nome Paulo Nobre, que, além de pintar telas como ninguém, também trabalhava com um agenciador de retratos, que morava em Rio Claro – interior de São Paulo – e trazia as encomendas para o senhor Paulo pintar ou retocar, cuja afinação, (corrigir imperfeições das faces), ficava sendo tarefa minha e me dava muito orgulho. O senhor Paulo gostava muito de mim. A dedicação com que ele me tratava deixava-me esquecer boa parte das mágoas e tristezas que eu tinha passado desde que fiquei sem pai e sem mãe. Enquanto ele retocava, eu, com um cavalete ligeiramente à frente dele, afinava os rostos, tirando as imperfeições deixadas devido ao processo de ampliação de uma fotografia tamanho 3x4cm para um retrato tamanho 35x50cm, por exemplo. Ele gostava muito também de música lírica. Enquanto trabalhávamos, todas as quintas-feiras, às 11 horas, ele sintonizava seu rádio na Rádio Gazeta de São Paulo, que tinha um programa somente de música erudita, com trechos de ópera, inclusive. De vez em quando, dependendo do cantor que estivesse cantando – os nomes de que me lembro são de Mário Lanza, Benamino Gilli, Hímah Sumak e Herna Sak – o ateliê em que trabalhávamos quase estourava. Devido ao fato de o senhor Paulo adorar bel canto e ser “barítono”, ele colocava o rádio no último volume e, com sua voz potentíssima, cantava junto, enquanto trabalhávamos. Isso pra mim caía como uma bênção. Além disso, o senhor Paulo, além da arte da pintura, ensinava-me impostação de voz para cantar. Quando eu cantava qualquer início de música com a voz impostada – como ele havia me ensinado –, ele vibrava tanto que chegava a bater palmas me incentivando a cantar novamente. Devido ao nosso excesso de ânimo, de vez em quando, sua esposa se deslocava dos seus afazeres para, educadamente, sem dizer uma palavra, olhar-nos, sugerindo com isso que não nos excedêssemos. Na hora do almoço, todos os dias, ela me convidava para que eu almoçasse junto com eles na mesa (aplicada, aqui, a lei da compensação). Dona Sicca – esse era o nome pelo qual seu marido carinhosamente a chamava – acomodava todos na mesa, senhor Paulo, ela própria, os três filhos, - Reinaldo, Maria Amélia e Henrique -, incluindo-me no grupo. Lembro-me de que Maria Amélia deveria ter naquela época seis ou sete anos, mais ou menos. O Reizinho – assim era chamado Reinaldo –, uns 11 anos, e o Henrique, uns 13 anos, aproximadamente. Nem por isso, eu era preterido em relação às iguarias que eram servidas no almoço. Devo admitir que grande parte da educação que até hoje possuo devo à convivência que tive com essa abençoada família – que saudade!


Para me deslocar da pensão até meu local de trabalho, todos os dias, eu percorria uma distância de uns quatro quilômetros andando a pé até chegar à Avenida Celso Garcia e pegar um bonde (Belém), que me levaria até a Rua Herval, onde ficava meu trabalho. Eu morava na Rua Silva Telles, no Brás, e trabalhava no Belenzinho. Recebia por produção. Se trabalhasse e produzisse – afinasse – bastantes retratos, ganharia razoavelmente bem. Do contrário, nada, porque eu não tinha nenhum ganho fixo. Por mais que eu me esforçasse, eram raras as semanas que eu conseguia uma retirada após descontar o dinheiro da pensão, que era sagrado. Dificilmente me sobrava dinheiro para comprar alguma roupa. Certa vez, tive de ficar deitado embaixo das cobertas, sem roupa, esperando meu calção secar no varal. Tenho até vergonha de dizer a razão, mas acontece que, num dia de sábado, instalou-se uma feira a cerca de 50 metros de casa. Eu e alguns colegas passeávamos em volta das barracas. Eu havia tomado purgante (óleo de rícino) havia pouco tempo, razão pela qual não tinha ido trabalhar. Meus coleguinhas, não sei explicar o porquê, iniciaram uma guerra de tomates podres. Quando, no meio das barracas, abaixei-me para pegar do chão um tomate para revidar, um feirante veio por trás e me deu um chute no traseiro tão violento que me desgovernou, a ponto de, ao mesmo tempo em que eu corria pra casa, ir deixando um rastro do efeito do purgante com xixi pela calçada. Como eu tinha apenas um calção, não deu outra. Enquanto não secasse da lavagem, eu não poderia levantar-me da cama.


De outra feita, perguntei a possibilidade de pagar um pouco menos pela pensão, devido ao fato de almoçar todo dia no trabalho. A intenção era que me sobrasse algum dinheiro para comprar roupas. A resposta, cortante, veio da parte de uma das filhas da dona da pensão: “Está cheio de pensões por aí. Caso não esteja contente, a porta da rua é a serventia da casa!” E ainda diziam que eu era tratado como filho – imaginem se não fosse! Mais uma vez, tinha que engolir a seco e calar a boca, indo chorar escondido, abafando meus soluços com meu travesseiro, pois não tinha quem interviesse a meu favor. Meus irmãos? Não me visitavam nem pra saber se eu estava vivo. A realidade nua e crua era que eu tinha de me virar de qualquer maneira pra sobreviver. Procurei, a partir da premissa de que somente poderia contar comigo mesmo, apegar-me com unhas e dentes ao meu serviço no sentido de aperfeiçoar o máximo possível cada retrato que vinha a minhas mãos. Minha fama de afinador espalhou-se entre os melhores retocadores, os quais queriam que eu trabalhasse para eles. Como trabalhar com o senhor Paulo Nobre estava ficando cada vez mais difícil, por eu ter de produzir mais para poder arcar com os vencimentos necessários a minha subsistência, achei por bem ensinar minha profissão a um colega. Meu objetivo seria deixá-lo em meu lugar com o senhor Paulo Nobre, pagando assim, com gratidão, aos ensinamentos advindos dele, não o deixando totalmente na mão. Depois eu encontraria alguma maneira de aumentar meus vencimentos e arcar com minhas despesas essenciais.


Aos domingos pela manhã, eu jogava bola pelo grupo infantil do Esporte Clube União Silva Telles (o vovô da várzea) e tinha um colega chamado Liberato Farina (Tato), um pouco mais velho do que eu, também jogador, mas numa categoria superior à minha – juvenil e esporte. Ciente de que ele gostaria de aprender minha profissão, convidei-o para ir comigo todos os dias trabalhar que eu lhe ensinaria meu serviço na íntegra. O senhor Paulo Nobre tinha autorizado minha atitude. Passados alguns dias, Tato estava tinindo em matéria de afinação. Daí em diante, passei a trabalhar com outro pintor de telas, também de renome, chamado Romeu Caiani, respeitadíssimo por seus trabalhos em tela. Seu ateliê situava-se na Avenida Celso Garcia, diante do Instituto Disciplinário. Sua produção de retratos policromados pintados com tinta a óleo era grande, devido à contribuição de outro pintor, senhor Hélio. Assim, eu deitava e rolava nas afinações, ganhando dinheiro como água. Passei a comprar roupas finas, terno feito sob medida em alfaiate – o branquinho –, blusões, camisas esporte e social, sapatos de cromo alemão – deixei de usar alpargatas. Enfim, dei uma guinada de 90 graus. Na pensão, como sempre, jogavam-me na cara como se fosse um xingamento a frase: “você é pensionista”; então, passei a me portar como tal. Dava somente o dinheiro que era estipulado como pensão. Antes, entregava todo o dinheiro que ganhava à mulher da pensão. Mesmo assim, nunca tive algum privilégio durante o tempo em que lá permaneci, nem ao menos na comida.


Indicaram-me também naquela época outro pintor renomado, de nome Paulo Ansaldi, que queria que eu afinasse alguns policromados, pinturas de ampliações de fotografias feitas a pincel e tinta a óleo em seu ateliê, situado num prédio de apartamentos na Avenida Ipiranga, onde também ficava sua residência. Igual aos pintores anteriores, Paulo Ansaldi era um senhor de fino trato e costumes. Como eu executava sua produção de pinturas em dois ou três dias, sobrava-me tempo suficiente para dar conta de outros trabalhos. Quando a quantidade de serviço era muito grande, eu levava as produções para fazer num cantinho da despensa na pensão, trabalhando até altas horas da noite. Com o inconveniente de ter de ouvir rotineiras reclamações: “Apaga essa luz aí! Como é? Você vai demorar muito com isso aí?” A verdade era uma só: tanto a dona da pensão como seus filhos tinham o gosto de questionar tudo que eu fizesse, pelo simples prazer de fazer valer sua autoridade. Eu tinha roupas bonitas, e o filho mais novo da dona tinha a mania de usá-las sem a minha permissão. Eu me desforrava nele mandando-o tirar imediatamente minhas roupas do corpo. Aí é que pegava “fogo na canjica”. Juntavam-se mãe e irmãs a defenderem o rapaz. Uma das irmãs dizia ao irmão: “Você não precisa dessa porcaria de roupa!” Gritava: “Joga essa m... na cama dele e nunca mais use nada dele, ouviu?” Como se não bastasse, também a mãe aproveitava o ensejo, fazendo-se de vítima. “Ai, gente, eu não agüento mais... eu sou uma desgraçada... não sei por que eu não morro!” E fingia puxar os cabelos. Fato inusitado, o filho mais velho, vendo o tamanho daquela ignorância, veio em meu favor – ao menos uma vez, ufa! “Vocês estão erradas, o Primo está coberto de razão. Ele compra as roupas com o suor do rosto dele pra poder usá-las quando precisar. Quando chega essa hora, suas roupas estão sujas, porque usaram sem sua permissão! E vocês ainda querem ter razão? Ora, façam-me o favor!” Desse dia em diante, passei a ter um aliado. O marido da dona da pensão não tinha boca para nada. Era o verdadeiro anjo em pessoa. O filho mais velho, casado, exatamente o que veio em minha defesa no caso das roupas citadas, apoiava-me em tudo. O outro filho, solteiro, um pouco mais novo, quase não opinava também, tal qual o outro filho ligeiramente mais novo. A encrenca e falsidade mesmo vinham da mãe, filhas e do filho menor, que fazia chantagem emocional, com reclamações a meu respeito, instigando-as contra mim. Usando meu jogo de cintura, eu ia engolindo um sapo aqui, desforrando de alguma maneira ali, chorando minhas tristezas e lembranças de minha família lá e levando uma vida solitária e amargurada, sem ter com quem desabafar. E dizer que eu tinha oito irmãos espalhados cada um pra um canto de São Paulo... Dói ou não dói? Meus aniversários, muitas vezes, passavam despercebidos até por mim, dada a pouca atenção que meus familiares me dispensavam.


Quando eu tinha algum dinheiro sobrando, coisa bem difícil, eu pagava uma pizza para alguns colegas, que eram quem, nessa altura dos acontecimentos, eu tinha. Festejava meu aniversário com alguns pedaços de pizza junto a eles. Pelo menos, momentaneamente, eu recebia um carinho. Mesmo não sendo de minha família, enganava meu coração e me deixava um pouco feliz. O chato de tudo isso era quando eu ficava só. Meus amigos iam cada um para sua casa e eu, sozinho, voltava a minha realidade – agüenta travesseiro. Nunca deixei ninguém perceber que eu chorava – porque homem que é homem não chora – e não iria ser eu a exceção, mas que eu chorava, chorava. Devo dizer que nessa fase de minha vida, dentre vários colegas, havia um que morava a uma quadra de minha casa, que se chamava Flávio. Ele tinha um irmão de nome Gilberto – mais novo –, regulando com minha idade, e, esporadicamente, convidava-me para nadar nas piscinas do Clube de Regatas Floresta, Antigo Clube Spéria. Alguém de sua família devia ser sócio e, graças a isso, eu tinha o privilégio de ser convidado de honra. Por causa desse obséquio, eu me esbaldava naquelas maravilhosas piscinas. De tanto beber água delas, acabei por aprender a nadar um pouquinho. Outra amizade que me traz boas lembranças foi a de Marcos Borlenghi, filho do dono de uma empresa de transportes de nome Guido Borlenghi, situada em uma esquina da Rua Cachoeira com a Rua Silva Telles, no bairro do Brás. Ele pegava um dos FNM “cara chata” – fenemê, popularmente falando – da empresa de seu pai, mandava-me subir na boléia e dávamos algumas voltas pelo bairro do Brás e Pari, deixando todos que nos viam passar boquiabertos, devido à capacidade de dirigir que o Marcos tinha, levando-se em consideração que ele era relativamente pequeno no tamanho e tinha mais ou menos uns 14 anos de idade. Costumeiramente, jogávamos pelada em um campinho, um terreno baldio também perto de minha casa (pensão) na Rua Silva Telles. O ponto alto disso tudo recai sobre outro colega, que me chamava bastante a atenção. Seu nome era Cadhemar, seu pai tinha uma lojinha especializada em artigos de borracha, situada na Avenida Rangel Pestana, ali nas imediações em que se situava o antigo Cine Santa Helena. Quem for dessa época irá se lembrar. Quando jogávamos as peladas, raro era o dia que uma partida fosse até o fim. Cadhemar encrencava com seus colegas de time ou com o time adversário e saía descendo o braço sem dó nem piedade em quem viesse pela frente. Fosse grande ou pequeno, ele encarava, apelando inclusive para golpes baixos, que sou impossibilitado de citar para não baixar o nível mais do que já baixei. Só sei dizer que ele acabava deixando seus próprios colegas de time receosos por causa de seus arroubos de violência. Mas, dali a pouco, lá estávamos todos juntos novamente. Na maioria das vezes, eu também participava das peladas e comumente também da pancadaria – quem podia mais chorava menos.


Certo dia, depois de uma boa briga entre amigos, os nervos acalmados, alguém sugeriu que fossemos nadar no Rio Tietê, embaixo da ponte da Vila Guilherme. Quando já estávamos chegando ao começo da ponte, vinha também chegando um furgão azul da companhia de doce Confiança, veículo que tinha somente porta em sua traseira. Um dos meninos, não lembro exatamente qual, assim que o furgão de doces começou a entrar na ponte para transpô-la, subiu com o carro em movimento, abriu a porta e foi jogando caixas de chocolates para outro, que corria ao lado, no ritmo que o furgão andava – devagar – para ir recebendo as caixas de doces jogadas. Após atravessar a ponte, o motorista do furgão nem podia imaginar que havia sido roubado nem como sumiram as caixas de doces. Após esse mau feito, como que se não houvesse acontecido nada de anormal, eles distribuíram chocolates para todos à vontade, até ao exagero. Depois de nos fartarmos de tanto comer, iniciou-se uma guerra de chocolates. Alguns, mais afoitos, atiravam-se de cima da ponte para não serem atingidos pelos chocolates. Ao mergulhar naquele rio – que já naquela época era bastante poluído – voltavam com suas cabeças lambuzadas de fezes. Um nojo de lembrança, essa. A partir desse dia, vi que não poderia mais participar daquele grupinho de amigos. Como a corda sempre estoura do lado mais fraco, adivinhem de que lado estouraria? Isso mesmo, do meu lado. Achei melhor dar um basta naquilo enquanto ainda era tempo.


Passei a freqüentar o Esporte Clube União Silva Telles, o “Vovô da Várzea”. À noite, quando eu não tinha retratos extras para afinar, dirigia-me para a sede do clube, que ficava na Rua Bresser, na frente da Rua Santa Rita, no bairro do Brás. Lá ficava eu, jogando tênis de mesa, entre um grupo de amigos bastante diferente do anterior. Aos sábados à noite e domingos à tarde, costumava haver baile para os associados, e o pé-de-valsa, aqui, estava lá de prontidão, com um terno feito pelo Branquinho, meu alfaiate, camisa para gravata de pêlo de pêssego, sapato “scatamachia”, de cromo alemão, e colônia Sonho de Pinho. Eu alugava uma mesa estratégica no salão, colocava um cuba-libre em cima da mesa e, se Deus ajudasse, já seria covardia. Lá ia eu esnobar minhas qualidades de dançarino no auge da rumba, mambo, bolero e samba. Devido à maneira que eu costumava me trajar, apelidaram-me de “Panca”. Daí em diante ninguém mais me conhecia por Primo, meu nome de nascença. Em época de festas juninas, eu participava da quadrilha, trajado a caráter, caipira. Os amigos, com os quais eu mais tinha afinidade eram o Cláudio, que trabalhava de contínuo num escritório, na Rua São Bento, no centro de São Paulo; o Milton, propagandista e entregador de amostras do laboratório Roche; Cezar, escriturário de um banco. E também Luís Merllo, que às vezes era nosso goleiro do time juvenil, outras vezes do esporte (categoria existente no clube tida como a melhor), com quem aconteceu um fato muito interessante, fora do clube. Ele era técnico de som da Rádio Nacional de São Paulo, quando suas instalações eram na Rua Sebastião Pereira (Rua Das Palmeiras), onde também trabalhava seu pai, Senhor Victorio, como porteiro.


Certo dia, o Luís convidou-me para ir com ele conhecer a rádio, que era muito famosa na época. Após ter percorrido suas instalações, levou-me á sala da técnica, onde deveria gravar uns jingles com vinhetas de chamadas, que deveriam ser utilizadas no transcorrer do dia, conforme a programação da emissora. Dentro do aquário – como era chamada a sala da técnica de som – estávamos eu e o Luís, que devia ter entre 19 e 20 anos de idade. Nessa gravação, o locutor estava lendo um roteiro, em cima do palco do auditório da Rádio Nacional. O técnico era quem gravava era justamente o Luís Merllo. Por se tratar de gravação, não poderia haver erro, fosse de leitura ou de inflexão de voz. Quando isso acontecia, o Luís tinha de voltar a fita do gravador e dar novamente o sinal para o locutor começar tudo de novo. Depois de uns cinco ou seis erros do locutor ao ler as chamadas, o Luís passou a ficar nervoso e descontrolado. Insultava tanto o locutor lá de dentro da técnica, com palavrões, que sou impedido de registrá-los aqui. O locutor por sua vez, meio sem jeito, recebendo toda aquela humilhação, vermelho que só, desculpava-se novamente e começava tudo de novo, tentando não errar pra não ser desfeiteado. Sempre tive em mente que o locutor deve ter ficado tão magoado, que forjou, daquelas humilhações todas, uma alavanca com a qual trabalhou ferrenhamente, removendo montanhas para crescer e ter o prazer de, um dia, dar o troco por toda aquela ofensa recebida. Algum tempo depois, ele se tornou o patrão – e que patrão. Quem me garante que ele não teve o prazer de mandar o Luís embora da emissora só pra se vingar? Eu faria isso. Se vocês que me lêem não adivinharam de quem se trata, eu vou dizer: o locutor em questão chama-se Sílvio Santos, Segnor Abravanel. Se eu deixar de citar um ou outro amigo nestes meus relatos, tenho a declarar que não foi em razão de importância, mas por falta de um espaço mínimo razoável para que eu pudesse explanar os pormenores dos fatos na íntegra, comentar os frutos de uma convivência salutar digna de ser reportada, que considero de suma importância, porque dada a criação que demonstraram ter recebido de seus pais. Indiretamente, esses amigos serviram-me de exemplo.


Uma vez, Milton me levou até o laboratório em que ele trabalhava e pegou um pacote de amostras, que deveriam ser entregues nos consultórios e constavam de uma relação que lhe foi entregue. Acabamos entregando juntos as amostras. De outra feita, o Cláudio convidou-me pra conhecer o serviço dele. Lá chegando, ele datilografou algumas coisas, pegou uns documentos e fomos a vários bancos, onde ele deveria sacar ou depositar algum dinheiro. Meu amigo Cezar, por sua vez, quando um ou outro baile de sábado lá no clube terminava um pouco mais tarde, convidava-me pra dormir em sua casa. Como jogávamos futebol no dia seguinte – ele no juvenil do Silva Telles e eu no infantil –, matávamos dois coelhos com uma cajadada. Outro amigão que não poderia deixar de citar é Alceu. Também foi no clube que o conheci. Ele me disse que trabalhava com seu irmão, que tinha um estúdio fotográfico, bem próximo dali, e me convidou para conhecê-lo. Aceitei o convite e fui. Eduardo, irmão de Alceu e dono do estúdio, estava sentado com a cabeça dentro de uma espécie de cabaninha, com uma luz por trás de um vidro “leitoso”. Ao ver que eu estava curioso, brincou comigo dizendo: “quer trabalhar um pouquinho?” Deu-me um lápis, com uma ponta parecida com uma agulha, já velho conhecido meu, mas Eduardo e o Alceu não sabiam disso. Peguei aquele lápis e uma lixa bem fina que estavam em cima da mesinha. Cortei uma tira, dobrei-a ao meio e enfiei a ponta do lápis dentro dela, fazendo movimentos circulares com a mão esquerda e movimentos horizontais para frente e para trás com a mão direita. Deixei aquela ponta de lápis tão fina, que eles adotaram meu sistema de afiar lápis naquele instante. Como o Eduardo havia me convidado pra trabalhar um pouquinho – se bem que de brincadeira –, eu não dispensei o convite e me sentei, colocando a cabeça naquela “cabaninha”, com um pano preto que evitava claridade dos lados. Quando olhei bem de perto, notei seis negativos de fotografias 3x4. Eduardo, rindo, voltou a dizer: “Bem, no lápis você sabe fazer ponta fina como ninguém, agora eu quero ver se você sabe retocar também.” A palavra retocar soou como música a meus ouvidos. Disso eu sabia até demais. Só que aquilo a que os fotógrafos chamavam de retocar para mim não passava de uma simples afinação que apenas se incumbe de tirar as imperfeições da face, ao passo que o trabalho que eu fazia era pintar a roupa, cabelo, fundo do retrato, etc. Então, peguei aquele lápis, afinei mais ainda sua ponta e larguei brasa. Passados alguns minutos, não sem todo instante Eduardo enfiar a cara dentro do retoquino (nome daquela cabaninha) para se certificar de que eu não estava fazendo alguma besteira que pudesse prejudicar aquele negativo, entreguei o lápis de novo para o Eduardo e lhe disse-lhe: “Isso que você chama de retocar, que você faz nos negativos 3x4, eu costumo fazer também, mas em retratos reproduzidos em tamanhos normalmente de 35x50 e com outro nome: afinação. Eu trabalho com retratos, ampliações pintadas em positivo, ao passo que você trabalha com tamanhos infinitamente menores e em negativos.” Eduardo, admirado pelo serviço que eu havia feito, segundo ele em tempo relativamente curto, ainda brincando, pegou uma caixa de papelão parecida com essas de guardar camisas, cheia de negativos de tamanhos variados, e me disse: “Você não vai embora, não. Pode sentar aqui no meu lugar e retocar pra mim, que eu vou lhe pagar um bom dinheiro.” Sem pensar duas vezes, aceitei o convite, não sem antes dar uma satisfação plausível aos pintores para os quais eu trabalhava. A partir desse dia, além de retocador, passei a exercer também as funções de fotógrafo, aliás, foi um pulo. Trabalhar com o Eduardo foi uma das boas coisas que aconteceram comigo. Primeiro, por se tratar de estar trabalhando a mais ou menos dez quarteirões da pensão em que eu morava; segundo, porque, devido à prática que eu já havia adquirido com os pintores, retocar negativos de fotografias era uma moleza.


Eu trabalhava para Eduardo, no Foto Schimidt, em regime de produção. Os negativos que eu retocava eram anotados num caderno em separado; quando chegava o fim da semana, somávamos o total dos serviços executados e eu recebia por aquilo. Daí pra frente, meu padrão de vida mudou de um salto. Animado com a facilidade que eu tinha de retocar negativos e sabendo que, quanto mais eu retocasse, mais dinheiro ganharia, procurei dar o máximo de mim, chegando a levar fotografias de reportagens de casamentos para fazer em casa em algumas noites. Sempre que eu quisesse adquirir alguma coisa, dentro de meu padrão de vida, claro, eu procurava produzir mais, para ganhar o dinheiro suficiente e coroar com êxito meu objetivo. Na medida em que eu ia comprando um sapato novo ou uma camisa nova, lá na pensão já começava aquela ladainha famosa da dona: “Aí, gente! (com as mãos na cintura) As coisas estão aumentando tanto, que esse valor de pensão não está dando, não. Mês que vem vai ter aumento.” Para complementar, uma das filhas – a mais nova – intrometia-se como se fosse a dona da verdade, dizendo: “É isso mesmo, mãe. Quem não quiser, a porta da rua é serventia da casa.” “Quem tem dinheiro pra estar comprando roupas e sapatos caros pode muito bem pagar mais.” Eu ouvia tudo calado, como sempre. Se ao menos algum irmão dos muitos que eu tinha me visitasse de vez em quando, eu teria alguém que, pelo menos, na pior das hipóteses, dissesse algo em meu favor. Argumento para rebater ou questionar, eu tinha até demais. Mas, como eu era uma criança, tinha que ver ouvir e calar. Se eu pudesse fazer valer minha voz...


O filho solteiro mais velho não dava dinheiro em casa porque estava noivando e precisava juntar dinheiro para se casar. O outro, ligeiramente mais novo, com a desculpa de estudar para tentar entrar na guarda civil, não dava também nenhum. A moça mais velha vivia mudando de emprego – balconista – e, com isso, a grana, dinheiro, que era bom, nada. A mãe disfarçava, insinuando que a filha comparecia com algum, mas não me convencia. A única que podia pôr banca, entre todos na casa, era a filha mais nova. Essa, verdade seja dita, nunca a vi desempregada. Já o menino, cuja idade regulava mais ou menos comigo, pelo que me lembro só trabalhou um pequeno período – um ano mais ou menos. O resto do tempo enrolava todo mundo. Para passear, só não usava meus sapatos, porque seus pés eram maiores. Mas minhas roupas ele usava, aliás, com a conivência de sua mãe e irmãs. E ai de mim, se reclamasse! Todos se juntavam em sua defesa. Em suma: o único que não dava mancada com dinheiro naquela pensão era eu. Mesmo assim, caso houvesse um atraso de pagamento que fosse apenas de dias, meu ouvido virava um verdadeiro penico de tanta “M” que eu ouvia. A pessoa por quem eu mais tinha respeito naquela pensão era justamente o patriarca da casa. Homem de origem humilde e de educação exemplar, sem mentiras ou falsidades. Quando todos esbravejavam, ele apenas ouvia e olhava com muita discrição, mas seu olhar dizia muito mais do que as palavras. De uma frase que ele dizia muito quando simulava uma repreensão a alguém, lembro-me com carinho e até hoje a repito: “Esse pamonha, é isso, esse pamonha não vê que está errado? Precisa ter o pamonha para o ladino viver.” Pamonha era a ofensa mais grave que ele sabia dizer. Exemplo digno de ser copiado.


Certo dia, ao voltar da rua em um horário não costumeiro, havia uma reunião na cozinha. O senhorio (dono) da casa a queria de volta por não haver acordo quanto a um aumento de aluguel. Deus escreve direito por linhas tortas. O burburinho continuava lá na cozinha e eu, escondido, ouvia tudo. Eles diziam que, na hipótese de se mudarem para Santo André, na divisão dos quartos, eu ficaria sobrando, por se tratar de ser uma casa menor que a atual. A solução – fria e calculista – partiu de uma das filhas da dona da pensão, a mais nova, que, com naturalidade, disse em alto e bom som: “É o seguinte: a casa comporta apenas nós. Portanto, o Primo é pensionista, e que se vire em outra pensão por aí.” Nesse instante, o filho mais velho interferiu: “Vocês não estão em condições de estar pondo toda essa banca, não. Só dois estão trabalhando aqui nesta casa. E o dinheiro do Primo faz falta, sim.” E prosseguiu: “Onde eu faço reuniões de minha religião, além do salão que eu uso, há três cômodos grandes com espaço de sobra para o Primo também. E digo mais: não é embaixo da escada, não. E se houver mais alguém, espaço não falta. Há também uma sala, cozinha e uma área de serviço em cima da laje, porque é um sobrado. O único inconveniente é ter somente um banheiro, que quando houver reuniões, terá de ser usado por todos. Se vocês quiserem, eu divido o aluguel com vocês até o dono do imóvel cismar de pedir para reforma.” Como o valor do aluguel era bem menor e conveniente, todos concordaram. Nesse instante, simulei que acabava de chegar. O filho mais velho deu-me umas tapinhas nas costas e sorrindo disse: “Primo meu velho: de hoje em diante você deixará de dormir embaixo da escada.” Fingi não entender e perguntei: “Por quê?” Nisso, como se não tivesse havido nada de anormal, todos disseram quase que em coro: “Porque vamos mudar para uma casa maior, o que você acha?” Sem deixar que percebessem que já sabia, respondi: “Ah, é?”, de forma displicente. “Por mim, tudo bem”, sem aparentar qualquer animação ou alegria. Ao estranharem minha reação, alguém perguntou: “Parece que você não ficou contente?” Respondi sem entusiasmo: “Claro, fiquei contente, sim, claro.” Aquele tinha sido mais um sapo que eu havia engolido.


Após trabalhar uns cinco anos mais ou menos no Foto Schimidt, surgiu uma oportunidade de fazer um teste para uma vaga de distribuidor de materiais na Estrada de Ferro Santos a Jundiaí RFFSA, em um dos depósitos de materiais da Lapa. Participei de todas as provas do processo de seleção. Passei e fui trabalhar na ferrovia. Junto comigo, havia outro participante, chamado Batista, que foi colocado para trabalhar com o Almoxarife Chefe daquela repartição, Senhor Ribeiro, em uma escrivaninha bonitinha, limpinha, com uma máquina de escrever. Nada como ter um QI (Quem Indica)... Quanto ao bobão aqui, jogaram em um depósito de materiais sem o mínimo de limpeza, perdendo de dez a zero, se comparado aos meus trabalhos anteriores, nos quais, além de prevalecer à limpeza, sempre fui respeitado em todos os pontos de vista. Logo em meu primeiro dia de serviço, no depósito de materiais onde disseram que eu devia trabalhar, o chefe, de nome Rabelo, dirigiu-me um olhar tão frio, sem ao menos me dizer bom dia, que já revelou o grau de ignorância que reinaria naquele local de trabalho. Tudo ali, para mim, era completamente estranho, portanto, eu deveria merecer um mínimo de compreensão por parte do dirigente, ensinando-me os pormenores, orientando-me para que eu pudesse exercer aquela função que me foi destinada da melhor maneira possível. Infelizmente, isso não aconteceu. Para trabalhar, eu tinha de me levantar às 4h30min, pegar um ônibus até a estação da Luz, pegar um trem, que me deixaria em meu local de trabalho, na Lapa, faltando mais ou menos cinco minutos para as sete horas da manhã. Às 11h, aglomerava-se uma fila de empregados diante da máquina de picar cartão para, em seguida, sair correndo pelos pátios atrás de esquentar suas marmitas. Como eu não podia levar marmita – porque morava em pensão – tinha exatamente uma hora para sair correndo ao lugar mais próximo do serviço e comer. Eu sempre me dirigia a uma casa que servia refeições, distante uns mil e quinhentos metros do meu serviço. Mal tinha tempo de mastigar e já voltava correndo para picar o meu cartão. Caso contrário: se tivesse atraso de um minuto em dois dias da semana, não precisava ir ao trabalho no dia seguinte porque o dia seria descontado. Como se não bastasse todo esse meu sacrifício, ainda tinha que ficar adulando todo mundo lá dentro para cada serviço que eu devesse realizar. A má vontade era geral. Parecia até que eu era um cachorro sarnento. Ninguém queria saber de me ensinar nada. O mesmo não acontecia com o outro, que entrou junto comigo. Ele recebia tratamento de chefe de departamento. Fiquei sabendo que ele era indicação do chefe do Departamento de Distribuição de Materiais. Um dia, mandaram me chamar ao telefone, avisando-me de que o marido da mulher da pensão em que eu morava havia falecido. Como eu sentia muito carinho por ele, deixei o serviço e fui para a pensão. Senti demais. Por que não dizer que chorei um bocado por aquela pessoa pela qual eu nutria muita simpatia e respeito? Quando chegou o dia do pagamento daquela merreca que eu ganhava naquela época, que equivalia nem à metade do que eu conseguia faturar retocando, descontaram-me o dia que perdi, o que eu considerei injusto, virei um bicho. Cansado de ser tratado sem o mínimo de consideração, insultei todos os falsos colegas de trabalho e pedi minha demissão sem pestanejar. A não ser pelo registro em carteira de trabalho, o que não foi mais que obrigação da empresa, aquele serviço que eu pensei ser uma alavanca para meu futuro só me fez foi desacreditar ainda mais dos que nos cerca – pelos maus pagam os bons.


Voltei a minha antiga, mas rentável profissão de retocador e fotógrafo, indo trabalhar com outro fotógrafo conhecido, de nome Bonçalo, no Foto Bonçalo, que se situava na Rua Maria Marcolina, no Brás. Confesso que nunca havia visto nenhum fotógrafo tirar tanta fotografia de casamentos como seu estúdio fotográfico, aos sábados. A partir das 16 horas, chegava a haver fila de casais aguardando para serem fotografados, terminando somente após as 23 horas. Com isso, acabei especializando-me na arrumação dos casais, especialmente nos vestidos das noivas para que a fotografia não cortasse parte de sua cauda. Nessa época, os casais costumavam se casar no civil e religioso – que saudade! O mês de maio era considerado o mês das noivas, preferido para os enlaces matrimoniais. Contente por ter voltado a ganhar, com meu esforço, o dinheiro que, naquele tempo, satisfazia todas as minhas necessidades de rapaz, eu levava minha vida repleta de amigos, sempre freqüentando o Clube Silva Telles, com seus bailes comentadíssimos naquela época. O réveillon, no fim de ano, então? Não existia igual. As orquestras que animavam os bailes eram as mais famosas. Só que, em todos os bailes de réveillon, quando todos confraternizavam, eu ficava praticamente sozinho, porque todos os meus amigos iam para suas casas para abraçar seus pais e familiares. Eu, como não tinha família, ficava sem saber a quem me dirigir no meio daquele salão, que acabava ficando ainda maior devido à minha solidão. O clube ficava somente com a orquestra, os garçons e eu. Havia mais três datas, além do réveillon, em que eu ficava muito amargurado. A primeira era o dia 14 de outubro, data de meu aniversário, no qual nunca tive um mísero bolo. Quando eu recebia uns parabéns chochos, era porque eu dizia que estava aniversariando ou, com algum dinheiro, pagava uma pizza para os amigos. Caso contrário, ninguém se lembraria ou saberia que eu existia. A segunda era o Natal, que sempre marcou minha existência, porque nunca ganhei presente. Vinha-me à mente o caminhãozinho de madeira, único brinquedo que ganhei em toda minha vida, exatamente quando minha mãe estava sendo velada na sala de minha casa. A terceira data: Dia das Mães, no qual não consigo descrever minha angústia, por nunca ter podido presenteá-la e abraçá-la, sentimento intensificado pelo incompreensível esquecimento de meus irmãos para comigo.


Passados aproximadamente dois anos trabalhando no Foto Bonçalo, em um dia de véspera de Natal, noite de ceia, o senhor Bonçalo e sua esposa pediram para que eu ficasse na casa deles à noite, para fazer companhia a uma irmã dele, porque eles iriam passar a ceia em outro lugar. Concordei e dormi em um sofá da sala. No dia seguinte, ao retornar, agradeceram-me, e sua esposa deu-me um embrulho, dizendo que era um presente para mim. Aceitei meio desconfiado, pois o papel que o envolvia era de embrulhar carne, todo amarrotado, que só com um toque se abriu, revelando uma camisa bem maior que o número que eu usava, de um tecido verde bem claro, com o colarinho todo desbotado – devia ter ficado muito tempo exposto ao sol. Tive a impressão de que ela havia me classificado como o último dos mendigos. Não acredito que ela, levando-se em conta o tempo que trabalhei com eles, não tivesse notado que as camisas que eu usava eram confeccionadas sob encomenda, feitas pelo melhor camiseiro daquela região, de nome “Camisaria Giron”. O pitoresco dessa história é que nem o filho da dona da pensão, que só usava minhas camisas, nem ao menos uma vez pegou essa. Por me sentir ofendido pela falta de consideração com a minha pessoa, sem dar satisfação, já que eu não era registrado, fui trabalhar no Foto São Bento, na rua do mesmo nome, só que em um padrão de serviço bem inferior, por se tratar de fotografias tiradas na hora para documentos. O inconveniente desse serviço era a distância. Depender de condução para trabalhar em São Paulo significava ficar no mínimo uma hora e meia ou mais no trânsito para se chegar ao destino. Por outro lado, trabalhar com o filho do dono de um foto na Rua São Bento, Zezinho, encarregado da gerência do estabelecimento, significava ter como me distrair, devido aos aprontos dele com uma ou outra garota, que, aliás, ele tinha até demais. Por intermédio do Zezinho, acabei conhecendo o Jóquei Clube de São Paulo pelo qual ele era apaixonado. Ele também me ensinou a jogar nos cavalos. Mas, como meu dinheiro não era capim, após perder em três páreos, eu parei de jogar definitivamente. Quando voltava do serviço para casa, após tomar banho ia encontrar-me com meus colegas costumeiros, em uma lanchonete que ficava na esquina da Rua Silva Telles com a Rua Rio Bonito. Lá, jogávamos bastante conversa fora, muita gozação sobrando pra todo mundo e, às vezes, um boxe que a TV Gazeta transmitia. Nessa época, havia um pequeno grupinho que queria se infiltrar entre nós. Mas, nossa turma, composta de dez a 15 pessoas, mais ou menos, não lhe dava oportunidade, porque era um grupo que já começava a fumar maconha, na linguagem deles, “puxar um fuminho”. Os colegas que iam aderindo ao vício eram isolados da nossa convivência. Pode-se dizer inclusive que o uso da maconha propriamente dita em São Paulo teve como nascedouro os bairros do Brás-Pari e Canindé, naquela época, ali, bem embaixo dos nossos olhos. Se tivesse havido uma força-tarefa direcionada, com muita seriedade e responsabilidade por parte das autoridades competentes do período, aquele princípio de “câncer” poderia facilmente ser extirpado e curado, evitando que se ramificasse e se alastrasse ao ponto incurável a que chegou. Faltou, portanto, estratégia de combatividade.


Hoje, quando vejo crianças, jovens e adultos usarem essa droga ou outra qualquer, quase não acredito. Ao mesmo tempo, sinto-me incapaz de discernir se meu sentimento é de dó ou de raiva de quem se droga. Oportunidades para experimentar maconha e outras drogas, eu tive até a exaustão. Dizer que esse ou aquele infeliz que puxa fumo, cheira cola, fuma crack, usa cocaína ou tem outros vícios, associando-se a isso inclusive roubar e matar, faz isso porque não tem ninguém por ele, é sozinho no mundo, a mãe bebe, os pais são separados, o pai bate na mãe, etc., não passa de uma desculpa esfarrapada e cabeluda, desprovida de fundamento e convencimento lógico aceitável, usada ultimamente como muleta para justificar o inaceitável, que é o vício em si. Como se não bastasse, meia dúzia de metidos a entendidos, ávidos de aparecerem na mídia, endossa essa desculpa, dando receitas mirabolantes que os pais devem seguir para que seus filhos não enveredem para o caminho do vício e criminalidade. Isso deixa as cabeças dos pais que não se enquadram nessa situação, mas com filhos que caíram nessa má vida, imaginando também ter alguma culpa. Mais razões e justificativas do que as que eu tive pra entrar no vício e criminalidade não há. Nem por isso optei pelo caminho do vício, da droga ou da marginalidade. Não me venham com essa de que fui a exceção. A não ser que vergonha na cara tenha mudado de nome. Não que eu esteja com isso querendo me auto afirmar, mas acredito que ser viciado, marginal, ladrão ou criminoso relaciona-se mais ao caráter da pessoa, que já nasce com ele. Que ninguém duvide disso nem queira inventar fórmulas milagrosas para mudá-lo, porque, além de não resolver o problema, vai criar ainda mais deveres e obrigações para os pais cumprirem, na maioria das vezes, sem poder reverter. Hoje em dia, todos trabalham. Marido e mulher, sem exceção, e, se orientados a agirem no intuito de corrigir o incorrigível, irão se desdobrar tanto, entrando de cabeça num poço totalmente sem fundo, e dando um verdadeiro furo na água - tarefa impossível. Infelizmente. Vão acabar se machucando tanto, se expondo a um ridículo tão grande, que pode muito bem ser evitado. Que me perdoem os partidários de formulas corretivas milagrosas. - pura ilusão. Digo isso porque presenciei pais serem humilhados pelos filhos na frente dos colegas, que, sem jogo de cintura suficiente, e querendo mostrar que aquilo tudo era normal, deixaram-se ser rebaixado pelos seus filhos a tal ponto, que me deu vontade de sair dando porrada – perdoem o palavreado – tanto no filho como em seus amigos, obrigando-os a pedir perdão de joelhos para os pais, numa tentativa de reverter a humilhação que haviam passado. Só não o fiz porque seria bem capaz dos pais se virarem contra mim e ainda dizerem que “não era o filho deles que estava falando, mas as drogas”, como costumam dizer os incautos. O pior de tudo isso é que é voz corrente – virou moda – atribuir a culpa dos atos praticados pelos ladrões, tarados, estupradores, assassinos, espancadores de mulheres, bem como agressões físicas, ao fato de o indivíduo estar drogado ou alcoolizado. Querem, tapando o sol com peneira, isentá-los de culpa, ou seja, inocentá-los. Pelo andar da carruagem, o destino final que querem nos fazer chegar é o seguinte: o indivíduo que pratica o delito é inocente. O réu, ou culpado, como queiram, são as drogas ou bebidas que invadiram o indivíduo, coitadinho. Portanto, se prenderem o indivíduo, estarão praticado uma injustiça muito grande, e isso não é coisa que se faça com um inocente!... Não estão vendo que “ele é uma vítima?” Devemos pedir desculpas a eles por estarem nos matando, roubando, estuprando, etc., afinal, é das “drogas”, não deles, a culpa, não é mesmo?... Para mim, isso é conversa de doido, - mas tem sua lógica.













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