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quarta-feira, 27 de outubro de 2010

inicio do livro "O Protagonista Oculto dos Anos 60" on line

               


        "O PROTAGONISTA OCULTO DOS ANOS 60"


P.S. Para quem se dispor a comprovar no que resultou meu debute literário titulado de: "O Protagonista Oculto dos Anos 60" basta contatar "Livros de Biografias - Memórias Sollus - Livraria Virtual", ou seu endereço Rua Airí, 24 - Tatuapé - S Paulo - SP. 03310-010. Meu desejo é que todos tenham uma leitura prazerosa; e me queiram bem, que não faz mal a ninguém.
Na hipótese de querer matar a curiosidade e não se dispuser a comprar meu livro?...Sentir-me-ei honrado em ter como leitor do mesmo online neste meu blog. Afinal, essa sempre foi minha intenção. É obvio. Portanto, sintan-se  vontade no aconchego de seu lar, brindando com sua maviosa atenção este meu livro, também online. Na eventualidade de vir a gostar de minha modesta maneira de me expressar nas paginas deste livro? Só me dará prazer. Caso contrário, antecipadamente deixo minhas desculpas. Nem sempre é possível agradar a todos.
PS. Se houver interesse de acompanhar este blog para se inteirar dos capítulos resultantes deste meu primeiro livro, - agora online?- Sentirme-ei lisonjeado. Apenas convido-o a assinar como meu seguidor. (espero não estar pedindo demais.) Ha... Se quiser postar algum comentário? Ele também será bem vindo. Apenas peço de antemão; que leve em consideração minha pouca experiência no trato com literatura, e que em boca pequena, amenize minhas falhas dizendo aos outros que ninguém é perfeito, e que esse meu erro quer ortográfico ou outro qualquer, se deu por um lapso imperceptível de minha parte, o qual nem deve ser levado em conta ok? Afinal de contas errar é humano, e "perdoar é divino". Bjos.


                                        "O PROTAGONISTA OCULTO DOS ANOS 60"
escritor: Primo Moreschi - Livro distribuido pela "Livros de Biografias - Memórias Sollus - Livraria Virtual", ou Rua Airí, 24 - Tatuapé, fone (11) 29420337 ramal 135
Copyright by c 2008 - Primo Moreschi
Todos os direitos reservado
Impresso no Brasil
Deposito Legal na Biblioteca Nacional


Editora Oeste
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Bairro Jardim Morumbi
79051-569 - Campo Grande - MS
Telefone: 67 3301 9010
edoeste@terra.com.br
http://www.editoraoeste.com.br/
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Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Moreschi Primo
M845p O Protagonista Oculto dos Anos 60 - Primo Moreschi. -
Campo Grande , MS: Ed.Oeste, 2008.
302 p. : il. : 23 cm.
ISBN: 978-85-88523-52-4
1.Moreschi, Primo. 2. Autobiografia - Músicos. 3. l. Título
CDD (22) 780 92






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"Wagner Benatti (Bitão) Se encarregou de assinar um primeiro parecer sobre este livro com as seguinte frazes":
                Duas pessoas numa só: o amigo Primo Moreschi e o amigo e músico Joe Primo. Este foi, e é, realmente um dos pioneiros do Rock'n roll brasileiro que nos seus primordios dos anos 1950 ainda era praticamente só instrumental.Foi assim que pelas mãos habilidosas, musicalidade consagrada e tenacidade deste brilhante músico surgiram duas das mais cultuadas e respeitadas bandas ( que na época dizia-se conjunto musical) do rock instrumental nacional: "The Jet Black´s e "Os Megatons". Muitos dos jovens músicos que iniciaram seus aprendizados naqueles longinquos e criativos anos 1960 tiveram como espelho essas duas bandas, sendo que "Os Megatons" apesar de nunca terem tido um sucesso avassalador como outras bandas da época, sempre foram cultuadissimos por todos os músicos pela qualidade instrumental e virtuose de seus integrantes. Lendo este livro - que na minha opinião é uma das obtas mais abrangentes do panorama musical jovem dos anos 1950 - 1960 - poderão entender exatamente o que estou dizendo, até porque tenho o orgulho de ter párticipado juntamente com Joe Primo da última formação dos Megatons no finalzinho dos anos 60. Leiam atentamente cada linha, cada detalhe deste ótimo livro e descobrirão muitas histórias nunca antes reveladas deste cenário musical do então iniciante rock'n roll brasileiro.


Bom divertimento! - Wagner Benatti (bitão)
Guitarrista- vocalista
da banda "Pholhas"




                                    "O Protagonista Oculto dos Anos 60"

                                                                                                
                                             

                             Uma seqüência de acontecimentos do mundo artístico nos finais dos anos 50 e inicio de 60; com revelações inusitadas, até então desconhecidas dos remanescentes e aficionados do Rock e Twist no Brasil. Neste livro, Primo Moreschi, (Joe Primo), sita uma serie de fatos vividos e vivenciados, merecedores de atenção especial de quem de direito, no sentido de atenuar o mal que certas leis, e ações impensadas causam ao ser humano de boa índole,  trabalhador, cumpridor de seus deveres e obrigações, que em virtude de ter um caráter ilibado, sofre ao ter que encarar as agruras impostas por essa sociedade mesquinha, exclusivista, fria e calculista, demagoga e oportunista.
                
                                                                        “Sinopse”




Capitulo – I



A primeira infância



Pág. 01









Capitulo – II



Vida de órfão



Pág. 02









Capitulo – III



Vida de pensionista



Pág. 06









Capitulo – IV



O desenho – Profissão e arte



Pág. 12









Capitulo – V



Nasce o Artista



Pág. 25









Capitulo – VI



A caminho do Auge



Pág. 34









Capitulo – VII



A luta e o punhal pelas costas



Pág. 41









Capitulo – VIII



No Hospital – O começo do fim



Pág. 46









Capitulo IX



Preparando a volta



Pág.49









Capitulo – X



Retorno à batalha



Pág. 52









Capitulo – XI



Tons e Megaton´s – conhecendo o sucesso



Pág.59









Capitulo – XII



Provando now-how e se retirando



Pág.72









Capitulo – XIII



Fotografia, espiritualidade e amor



Pág. 74









Capitulo – XIV



A grande aventura na selva



Pág. 82









Capitulo XV



Parênteses – pausa para reflexão



Pág. 106









Capitulo XVI



A sorte e o casamento



Pág. 116









Capitulo XVII



Convite para uma nova vida



Pág.122









Capitulo XVIII



Vida de marceneiro



Pág. 125









Capitulo – XIX



Rinha de galo e briga de gente



Pág. 129









Capitulo XX



Parêntese II – reflexão nunca é demais



Pág. 134









Capitulo XXI



Gratidão, solidariedade e caldo de galinha,



não fazem mal a ninguém.



Pág. 137






                                                                Apresentação



                        1. Nem defunto autor nem autor defunto, felizmente, tampouco com a pretensão de fazer-me de grande escritor, sempre tive em mente, no entanto, num momento em que estivesse inspirado, de cabeça fresca, escrever um livro. Em síntese, algumas nuances de minha infância, adolescência e juventude, ricas que foram de fatos pitorescos e situações inusitadas que merecem um relato simples, de alguém que viveu e encarou a vida da maneira como esta lhe foi apresentada. Narrando minhas venturas e desventuras – que não foram poucas – confronto essas experiências com afirmações de certos “donos da verdade”, que vivem parafraseando ensinamentos para justificar determinado comportamento de crianças e adolescentes. Enfim, um depoimento de quem, mesmo com dificuldades, soube tirar dos obstáculos o próprio modo de superá-los, fazendo cair por terra certas teorias “modernas” sobre como os acontecimentos influenciam o caminho e as escolhas dos jovens.



CAPÍTULO I



A primeira infância



Pág. 03



                  Filho de italianos: lembro-me de que todos os dias, ao cair da tarde, ficava ansioso à espera de meu pai retornar do trabalho – ele era carpinteiro – porque, quando voltava do seu serviço, passava em um armazém vizinho de casa, sagradamente, tomava um aperitivo (rabo de galo) e comprava um doce de maria-mole. Não sei se o doce era grande demais ou minhas mãos muito pequenas (eu devia ter cinco ou seis anos), mas não conseguia segurar só com uma das mãos aquela delícia, cuja lembrança me dá água na boca até hoje. Ao chegar a casa, ele pedia para minha mãe deixar de fazer o serviço que estivesse fazendo porque ele o terminaria. Meus pais – que eu lembre – não me batiam. Salvo uma única vez que minha mãe, não sei por que cargas d’água, abaixou um calção que eu usava e me deu umas chineladas. Fiquei uns bons bocados chorando, deitado de bumbum pra cima no chão do jardim que havia em nossa casa, sentindo os grãos de areia que desprenderam do chinelo de minha mãe e grudaram em minha pele. Nessa época, morávamos na Rua Canuto Saraiva, no bairro da Móóca, em um sobradinho. Todos os dias, às 18 horas – hora do “Ângelo” – eu e minha irmã, a qual chamava carinhosamente de Mariínha, íamos até a nossa vizinha, dona Linda para ouvir o rádio e rezar a Ave Maria. Dona Linda tinha uma sobrinha que também se juntava a nós para rezar e, após brincar, comer uma maçã vez ou outra. Quando ela me oferecia um pedaço, eu, bobo, dizia que não gostava, sem imaginar que, por conta disso, a menina não mais me ofereceria. E eu sempre ficava com vontade de comer a fruta.



                  Lembro-me também, vagamente, de um vizinho, mais ou menos da minha idade, de nome Henrique – Henriquinho –, que, de vez em quando, juntava-se às brincadeiras. Fazíamos de conta que no jardim de minha casa, por entre aquelas plantinhas e capins, havia onças, macacos, Tarzan e muitos bichos criados pela nossa fértil imaginação infantil. Vez por outra, montavam um circo em um terreno baldio à distância de mais ou menos uns 100 metros da nossa casa. Eu e Mariínha fazíamos de tudo para assistir aos espetáculos, ora vendendo pipocas para o pipoqueiro, ora entrando como penetras por baixo da lona. Também o neto do dono do circo, que fazia o papel principal, de mocinho, no seriado que aos domingos encenavam, colocava-nos para dentro – o danado estava de olho em minha irmã. Ao término do seriado, ele ficava se insinuando para ela, mas meu outro irmão, Antônio, não permitia que ninguém namorasse minha irmã, porque ela tinha apenas nove ou 10 anos e era a única filha entre nove irmãos.
                   Outra coisa de que me lembro é que, vez por outra, meu irmão de nome Urbano reunia-se com mais quatro colegas para ensaiar as músicas que compunham o repertório de um conjunto de faroeste – muito em moda na época – do qual ele fazia parte, cujo nome era Rancheiros da Paulicéia. Vez por outra, apresentavam-se na Rádio América de São Paulo, trajados a caráter, ou seja, de cowboy, arrancando muitos aplausos da platéia, pela afinação e qualidade de seus componentes. Meu pai também cantava e, mesmo não tendo dois dedos, que por infelicidade perdera quando trabalhava em uma marcenaria, conseguia se acompanhar ao violão. Meu irmão Luiz era muito arteiro. Quando não estava em casa lendo gibis – coisa que meus pais não aprovavam – estava aprontando alguma traquinagem. Perto de casa, havia campinho, por sinal muito perigoso para brincadeiras, porque abrigava torres de transmissão de alta voltagem. Certo dia, meu irmão Luiz, influenciado pelos gibis, que não deixava de ler nem quando estava almoçando (hora sagrada), fez um pára-quedas do pano de um guarda-chuva velho e se atirou de cima de um dos lances da torre de alta tensão. Por verdadeiro milagre, não se quebrou todo. Como se não bastasse, um coleguinha seu, que devia ter a mesma idade de meu irmão (Zinho), também subiu em um dos lances da torre de alta tensão e a uma altura aproximada de quatro metros, com um cigarro na boca e um arame numa das mãos, cismou de acender o cigarro com uma das faíscas que o mesmo provocaria. O resultado não poderia ser outro: recebeu um enorme tranco, seguido de um estrondo com faíscas, pra ninguém botar defeito. Não sei precisar se o menino se safou dessa.
                   Existia também, naquela época, um parque de diversões de nome Xangai, que dentre múltiplos divertimentos, apresentava um espetáculo de calouros cujo animador chamava-se Zé Estaca. Não havia uma só apresentação de que Mariínha participasse cantando que não ganhasse o primeiro prêmio. O mérito disso tudo se devia à afinação e ao timbre de voz, combinados com sua beleza. Mamãe passava horas fazendo cachos em seus cabelos, com um ferro quente, deixando-a parecendo uma bonequinha. Nessa época, meus irmãos Sebastião e Orlando já eram casados. Portanto, nossa casa era composta da seguinte forma: José (papai), Concheta (mamãe), Agostinho, Urbano, Antônio, Luíz, Maria, Geraldo e Primo, que sou eu, - o caçula. Meus irmãos casados moravam em suas respectivas casas. Minha mãe, de repente, adoeceu. Pelo que me lembro, em seu quarto, estavam meu pai, meus irmãos e não sei precisar quem mais. Apenas me lembro de ter ouvido minha mãe, deitada na cama, dizer num tom de voz bem baixo para que cuidassem do Priminho e da Mariínha.



CAPÍTULO II



Vida de órfão.



Pág.04



                   Algum tempo depois, eu estava sentado em cima de um muro, ao lado do portão de entrada de minha casa, e várias pessoas entravam ou saíam, não sem antes passar a mão carinhosamente em minha cabeça. Nesse dia, ganhei do meu irmão Urbano um caminhãozinho de madeira (o primeiro e único presente que eu havia ganhado). O porquê disso tudo? Minha mãe estava sendo velada na sala de minha casa. Tenho para mim que tudo que se passava à minha volta não tinha tanta relevância quanto no tempo em que minha mãe vivia. Passados alguns meses, meu pai estava fazendo um vigamento e sofreu uma queda de cima do telhado, ferindo a cabeça e indo parar no hospital. Após alguns dias, veio também a falecer. Desse dia em diante, nossa família, tal qual uma nau sem rumo no mar revolto, tentou encontrar o caminho que deveria ser tomado, com o intuito de preservar nossa união. Todos, em comum acordo, decidiram que morar em uma pensão resolveria em parte nossos problemas. Pela idade, somente eu e minha irmã não tomamos parte da decisão. Foi então que meu irmão Orlando levou-me para morar consigo. Sua casa constituía-se de um quarto e uma sala e, fora, um banheiro coletivo. Na verdade, um cortiço. A cozinha, era dividida com sua sogra, que também morava lá.
                  Quando cheguei, a mulher dele acomodou-me para dormir em cima de duas cadeiras da sala, que me serviram de cama. O poder aquisitivo de meu irmão não era dos maiores, levando-se em conta que era barbeiro. A esposa de meu irmão tratava-me como se eu fosse seu empregado. Dava-me, a seu bel-prazer, às vezes, repreensões por coisas que eu não havia feito. Era tão exagerada e infundada em suas acusações, que até sua própria mãe a censurava, intercedendo a meu favor. Quando Orlando voltava do trabalho, ela era a falsidade em pessoa. Simulava brincadeira comigo, abraçava-me, enfim, mudava da água para o vinho. Ao retornar para o serviço, meu irmão nem sequer podia imaginar como eu era tratado. O tempo foi passando. Para se ver livre de mim, ela passou a inventar coisas inacreditáveis a meu respeito, para que meu irmão me internasse num orfanato ou instituto disciplinar. Caso não o fizesse, ela o ameaçava de separação.
                Orlando comentou o ocorrido com meu irmão Sebastião, também casado. (Ele havia ido cortar o cabelo na barbearia na qual Orlando (Lando) trabalhava), Sebastião lhe disse que, se o problema fosse esse, ele o resolveria de imediato, levando-me para morar em sua casa. “Eu vivo com minha mulher em uma casinha de meia água na estação de XV de Novembro, mas, se for pra salvar teu casamento, levo o Priminho pra morar lá em casa até quando ele quiser”- foram suas palavras. Dito isso, Sebastião levou-me somente com a roupa que eu estava vestindo, não sem antes dizer umas verdades (que a ética me impede de citar) para a mulher de Orlando. E, assim, lá fui eu para casa de Sebastião. Após algum tempo – não sei precisar quanto –, chegamos de trem à Estação de XV de Novembro. Saltamos do trem, andamos uns 20 minutos mais ou menos e entramos num armazém para comprar alguns alimentos. O dono do armazém perguntou para Sebastião quem eu era, ao que ele respondeu prontamente que eu era seu irmão e iria levar-me pra morar com ele, dizendo: “onde come um, comem dois, comem três”. Em seguida, o dono do armazém complementou. “E quando ele crescer vai ajudá-lo nas despesas da casa, não é?”, ao que meu irmão retrucou: “Aí você se engana. Eu vou criá-lo e, quando ele for adulto, que siga o caminho que Deus achar que ele deva seguir.”
                     Ao chegar a sua casa, a mulher de Sebastião, de nome Noêmia, perguntou meio surpresa, o que eu estava fazendo ali. Meu irmão lhe contou o acontecido, e ela, sem esboçar nenhum gesto que desse a entender que não havia gostado, apenas disse: “Ah... é? Então, tudo bem”. Desse dia em diante, a convivência em família não poderia ser melhor. Tudo corria às mil maravilhas. Meu irmão tinha dois filhos, mas nem por isso eu era tratado com indiferença. Alguns acontecimentos dessa época até hoje me vêm à mente, de vez em quando. O primeiro diz respeito a uma vizinha do meu irmão, uma senhora morena, que, de vez em quando, vinha pedir para minha cunhada um copo de “esprito” (álcool) para acender a espiriteira e “quentá um leite”. Mal ela começava a ir embora, olhava dos dois lados, sorrateiramente; se não houvesse ninguém olhando, bebia uns goles do álcool e lá ia ela de pés descalços, a passos largos, para seu barraco de pau-a-pique coberto de sapé, de um cômodo – meia água. De vez em quando, dona Maria, a vizinha do “esprito”, ia para o mato cortar varas para cercar seu terreno e me levava junto. Eu ficava admirado com a quantidade de varas que ela conseguia carregar num feixe enorme que amarrava com cipó. Lembro-me também de fatos interessantes. Diante do nosso lote, cujo terreno era bem inclinado, havia um mato rasteiro, um misto de capim barba de bode com braquiária. Devido a essa inclinação do terreno, dona Maria conseguiu por duas vezes correr e escapar de uma cobra coral ou caninana, - não recordo bem o nome. Ela dizia que o bicho a perseguia, mas o engraçado disso tudo eram os gritos que soltava enquanto corria morro abaixo em disparada, com medo da cobra.
                      Outro fato interessante e inesquecível foi ter conhecido também um vizinho, que morava a uns cinco lotes de distância (uns 50 metros), um “preto velho”, estatura média, cabelos e barba comprida bem branquinha, chamado senhor João. Para melhor descrevê-lo: era exatamente aquela figura de um preto velho fumando cachimbo, tão usado em calendários. Ele colocava lenha no fogão caipira – que ele mesmo construíra, bem como sua casa de pau-a-pique coberta de sapé – e ficava de cócoras, pitando seu cachimbinho de barro, reacendendo-o de vez em quando com um graveto que tirava de seu fogão, transmitindo uma paz digna de ser perpetuada, pelo menos em minha lembrança. Aquela imagem calou tanto em minha memória, que, toda vez que vejo um preto velho, não resisto ao ímpeto de olhar seu rosto para ver se parece com o senhor João que conheci. Mas outra coisa também me marcou com relação a essa pessoa. Certa vez, ele colheu uma fruta num brejo, que existia ali nas proximidades de casa, e me deu para comer. Segundo o senhor João, essa fruta chamava-se banana do brejo. Até hoje, não encontrei ninguém que tivesse conhecimento de alguma fruta com as características daquela que ele me deu. Parecia-se com uma espiga de milho, um pouco mais grossa, com seus grãos deliciosamente doces, que a gente comia da mesma forma que se come o milho na espiga.
                  Marcantes, também nessa época em que eu morava com meu irmão Sebastião, foram às noites em que, devido à falta de espaço existente na casa e minha “cama” ser um colchonéte no chão de terra batida, eu acordava no meio da noite com formigas por todo meu corpo. - esse fenômeno chamava-se correção. Era um deus-nos-acuda. Meu irmão e minha cunhada jogavam cinzas do fogão em cima delas para espantá-las, enfim, lá se ia a noite inteira sem dormir. Passado algum tempo, outro irmão meu veio me visitar. Era o Antônio, a quem chamávamos carinhosamente de Toninho. Do terreiro de casa, avistei Toninho chegando lá embaixo, na estradinha que dava acesso a nossa casa. Fiquei tão contente que saí correndo, em disparada, ao seu encontro. Ele me abraçou fortemente, rodopiando comigo no seu colo, colocou-me no chão, agachou-se para ficar na minha altura. Ao mesmo tempo em que me fazia algumas perguntas, das quais não me lembro, segurava minhas mãos, apertando levemente umas saliências gordinhas que eu sempre tive em cima dos meus dedos. Nesse instante, notei que ele chorava.
                    Depois de conversar um bom tempo com Sebastião, Toninho levou-me para morar com ele. Lá vou eu novamente viajar no trem da Central do Brasil, com destino à capital de São Paulo. Toninho, nessa época, morava numa pensão na Rua Conselheiro Nébias, dividindo com outro pensionista um quarto onde havia duas camas. O companheiro de quarto do Toninho trabalhava à noite, então sua cama ficava vaga e eu podia ocupá-la. Mas, bastava começar a clarear o dia, eu tinha que levantar, pois era a vez do outro dormir. De manhã, meu irmão levava-me até um bar em que eu tomava uma média de café com leite e um pãozinho com manteiga para, em seguida, pegarmos um ônibus rumo ao bairro do Brás, onde Toninho trabalhava. Vez ou outra, ele me levava a uma pensão da Rua João Bohemer, no Brás, para almoçar (era um sobrado bem antigo). Não sei explicar bem ao certo, mas creio que Toninho deve ter “cortado um doze” para ficar comigo. Digo isso porque, solteiro, sem ter quem o ajudasse a cuidar de uma criança, fez das tripas coração para me cuidar.
                  Toninho, então, ajeitou as coisas para eu morar numa pensão, na qual já estavam morando outros quatro irmãos, pela ordem decrescente de idade, Agostinho, Urbano (tecelão), Luís (retocador de retratos), Geraldo (empregado em uma fábrica de calçados) e Mariínha, que trabalhava numa fábrica de ampolas. Ela vivia no mesmo quarto de meus irmãos, dividido apenas com uma folha de compensado, para ter um mínimo de privacidade – bem mínimo, diga-se, mas era a única alternativa encontrada naquele momento. Passei, a partir daquele instante, a morar com meus irmãos, como deveria ter morado desde quando meus pais faleceram. O único irmão solteiro que não estava morando com a gente era justamente Toninho, pois alugara um quarto juntamente com um colega, que, como ele, havia feito um curso técnico de rádio. Eles usariam o local tanto para o trabalho quanto para dormir. Meu irmão Geraldo, cujo apelido era Ladinho, trabalhava na frente da pensão onde morávamos. Ele encontrou um jeito para convencer o dono da fábrica de calçados a me empregar, alegando a necessidade premente de pagar minha pensão. Não foi nada fácil – eu tinha dez anos incompletos, e a idade mínima para trabalhar naquela época devia ser entre 12 e 14 anos. Depois de muito relutar, o dono da fábrica acabou atendendo a solicitação do meu irmão, cedendo-me o emprego. Lá fui eu, com um macacão de cor cáqui, todo contente, trabalhar de ajudante de montador de bico. Para ser mais claro, meu serviço resumia-se a amolecer a ponta dos sapatos na parte interna, que, feita com raspa de couro e cola de polvilho, endurecia, havendo necessidade de amolecê-la para que a ponta pudesse ser recoberta com couro e o sapato, modelado. Para mim, esse serviço era o mais importante de todos. Eu me sentia como o maior dos profissionais do calçado (que se danasse o fato de eu ser menor e sem carteira assinada). O principal de tudo era que eu estava trabalhando, podendo pagar meu sustento na pensão com meu trabalho.
CAPÍTULO III
Vida de pensionista
Pág.08
No primeiro contato que tive com a dona da pensão, não sei por que cargas d’água, alguém sugeriu que ela seria minha mãe, ao que imediatamente (com educação) descartei. Mesmo assim, não sei quem ainda disse: “Você não se lembra mais de sua mãe”? Educadamente, pedi que parassem com aquilo. Alguém devia ter imaginado que, como eu não tinha visto a saída do caixão de minha mãe para o enterro, eu poderia confundir e supor que outra pessoa – no caso a dona da pensão – fosse minha verdadeira mãe. Aquilo somente fez aguçar minha lembrança, que estava adormecida, fazendo-me sofrer novamente, sem nada falar pra ninguém, como era meu costume desde que fiquei sem meus pais. Como não há bem que sempre dure nem mal que nunca se acabe, no dia seguinte, lá estava eu pronto para trabalhar. Lá pelas nove horas – hora do lanche na fábrica de calçados – meu irmão Ladinho comprava uma garrafinha de guaraná cheia de café com leite, do qual ele tomava um pouco e me dava o restante. Nessa hora, outro companheiro de serviço, que trabalhava ao meu lado, procurava ensinar-me uma maneira de amolecer os bicos dos sapatos de uma forma que não ferisse tanto minhas mãos, e ao mesmo tempo ajudasse a acelerar o trabalho do montador de bicos, que dependia do meu serviço para finalizar as pontas dos calçados. Por mais boa vontade que o Edson – nome do companheiro de serviço – tivesse, não conseguiria seu intento, por conta de minhas frágeis mãos de criança. Passados uns dez dias, mais ou menos, desde que comecei a trabalhar, minhas mãos tinham tantos riscos e cortes que mais pareciam lixa para madeira número 15. Aos sábados, após o meio expediente da fábrica, eu não via a hora de chegar ao quarto da pensão. Meu irmão Luizinho, aos sábados e domingos, não perdia uma gafieira. Como ganhava muito bem na época, tinha uma infinidade de ternos de albene – um tecido fino, caro e muito em moda naqueles tempos – e vários pares de sapatos, feitos sob encomenda, em couro de pelica e cromo alemão. Eu ganhava, toda semana, uns trocados somente para engraxá-los. Esses trocados, na realidade, eram os únicos que eu possuía, pois o salário que eu recebia da fábrica se destinava todinho para a dona da pensão, ou seja, trabalhava apenas para comer e dormir, não sobrando um centavo  pra comprar um misero calção. O sapato que eu usava chamava-se alpargata roda – uma espécie de lona com solado de cordas.
Foi nesse meio tempo que passei a freqüentar o catecismo da Igreja Santo Antônio do Pari, para poder fazer minha primeira comunhão. Só que, para os meninos poderem receber a primeira comunhão naquele tempo, tinham de se vestir com terninho branco. Como não tínhamos dinheiro para comprá-lo, minha irmã Mariínha desmanchou um conjunto de roupa dela de albene branco e fez, com suas próprias mãos, meu traje. Diga-se, esnobei na cerimônia, com tudo que eu tinha direito, graças a ela. A única coisa que faltou foi uma fotografia, que todos tiraram para guardar de lembrança, menos eu, porque não podia pagar. Passados alguns dias, meu irmão Geraldo – Ladinho – inventou de seguir com um circo, - “Circo Arethuza”, deixando a pensão em que morávamos, bem como o emprego na fábrica de calçados, da qual também saí dias depois. Como eu tinha que trabalhar para pagar meu sustento, procurei e consegui outro emprego em uma esquina bem perto da pensão. Era uma distribuidora de palmito, onde meu serviço seria tirar as etiquetas velhas das latas de palmito, separar as latas que estivessem estufadas e rotular com rótulos novos as latas não estufadas. Novamente, o salário era todo destinado para pagar minha pensão.
De vez em quando, a dona da pensão, cuja religião era espírita, recebia a visita de uma irmã. Quando ela e seu marido chegavam, era mais do que certo que haveria reunião espírita. Sentavam-se ao redor da mesa de mais ou menos 12 ou 14 lugares, uma jarra de água, vários copos, toalha branca – igual a toalha de banquete – uma luz verde bem fraquinha (mal se via quem estivesse diante de si) e começavam os trabalhos. Um a um dos assentados à mesa ia sendo autorizado a receber seus guias (protetores). Passado o recebimento dos guias de todos, o presidente dava autorização para algum médium que quisesse manifestar algum outro espírito. Por essa época, meus irmãos, não sei precisar se por razões de aumento do valor da pensão ou outra razão, tinham a intenção de se mudar para outro lugar. E justamente nesse período, casualmente assisti a dita reunião espírita na casa. O primeiro médium a se manifestar foi exatamente a dona da pensão. Vou procurar descrever na íntegra como foi a manifestação:
Dona – (gemendo) “Aiiii... aiiiii... (pausa) aiiii
Presidente da mesa – “O que o irmão deseja?”
Dona – (com voz de quem está sofrendo) “Aiii... Primiiiinho...”
As pessoas que estavam do meu lado cutucaram-me dizendo para que eu pedisse bênção, pois era minha mãe que estava “baixando” na dona da pensão.  Nesse instante, eu estava que não agüentava mais de vontade de rir e também de fazer xixi. Mas, como me instigavam tanto para pedir bênção, resolvi satisfazê-los, sem me convencer nem por um instante de que minha mãe tivesse “baixado”. Para começar, minha mãe não me obrigava a pedir bênção quando era viva. A voz de minha mãe e seu sotaque, com o português “italianado”, eram pra mim inconfundíveis. O diálogo, após eu pedir benção foi assim:
Dona – (com voz bem fraca) “Deus te abençoe meu fiiilhoo.”
Presidente – “Quem está se manifestando no aparelho?”
Dona – “Coocheetaaa” =
Presidente – “O que você deseja do aparelho?”
Dona – “Uma preeeceee” (voz bem fraca, quase não se ouvindo)
Presidente – “Irmãos (pausa) vamos todos, em nome de Deus, fazer uma prece para aumentar a luz dessa irmã sofredora”
Todos rezam um Pai Nosso.
Dona – “Aiii... aiiii... Primiiinhooo, vocêêê...” Ela disse tão baixo, que o presidente interferiu, repetindo o que era falado quase sussurrando.
Presidente – “A irmã está pedindo que seus irmãos não façam o que estão pretendendo fazer e continuem morando aqui junto com você” (dirigindo-se a mim).
Dona – (voz bem baixa) “Tenho que iiirrr...”
Nesse instante, começaram a me cutucar de novo, para eu pedir bênção, porque minha mãe ia “subir”. Cansado daquela encenação, obedeci, pedindo mais uma vez bênção e me sentindo como um verdadeiro bocó de mola – termo usado pelos mais velhos para se referir a pessoas tolas. Depois desse ato, ocorreu o fechamento da sessão espírita, do mesmo jeito que havia começado, com cada médium recebendo seus respectivos guias protetores, dando uma tremenda tremida de corpo e voltando a ficar em silêncio, e o presidente dando como encerrados os trabalhos daquela noite. Todos tomam um pouco de “água benzida” e entabulam uma conversa, em torno de “quem recebeu quem”, que tem início com a irmã da dona perguntando a ela:
Irmã – “Sabe quem você recebeu?”
Dona – “Não, você sabe que eu sou médium inconsciente!”
Irmã – “Você recebeu a mãe do Primo”.
Dona – (com ar de surpresa) ”você está falando sério?”
Irmã – “Estou. E você sabe o que foi que ela disse?”
Dona – “Eu nem imagino! Mas me conte!”
Irmã – “Ela falou que os irmãos do Primo querem ir embora de sua pensão.”
Dona – (com ar de indignação) “É? (pausa)... não me diga... eu não acredito... o que ela falou mais, que eu estou ansiosa para saber?”
Irmã – “Ela pediu para o Primo dizer para os irmãos dele que é pra eles não irem embora daqui, não.”
Dona – “A mãe deles disse isso? (pausa) Bem... eu não vou dar nenhum palpite. Já que foi a mãe deles quem disse, eles que decidam!”
      Não contei para os meus irmãos o que se passou pura e simplesmente porque não acreditei em nada do que tinha visto e ouvido. O dia seguinte – um domingo – era especial pra mim. A Mariínha levava-me à matinê do cine “Rialto”. Lá íamos nós: eu, minha irmã e seu namoradinho, para assistir, além de um baita filme de bangue-bangue, ao seriado de Flash-Gordon no planeta Marte ou no planeta Ming. Saber que hoje em dia quase todas aquelas montagens dos filmes de Flash-Gordon transformaram-se em realidade deixa-me boquiaberto.
Por falar em boca aberta, nesse ano, no Domingo de Páscoa, minha irmã deu-me um ovo de chocolate tão grande que deu para comermos à vontade e ainda sobrou para uns dois dias, mais ou menos. Alguns dias depois, meus irmãos se mudaram. Cada qual seguiu para um lugar diferente. A pensão em que morávamos tornou-se grande demais porque somente eu e meu irmão Urbano ficamos. A dona da pensão reuniu sua família, composta pelo casal, dois filhos maiores de idade, duas moças com 18 e 20 anos e um menino apenas alguns meses mais novo do que eu, uns dez anos mais ou menos. Dessa reunião, decidiram que alugariam um sobradinho bem menor, re-alugariam um quarto nos fundos, e eu dormiria, provisoriamente, junto com o menino. Depois, meu irmão Luizinho, que havia se casado recentemente, iria me levar para morar com ele, aproveitando a oportunidade para me ensinar a profissão de afinador de retratos, reconhecida pelos fotógrafos como retocador. Nesse meio tempo, a etiquetadora de latas de palmito havia fechado. Tive de correr atrás de outro serviço, que desse o suficiente para pagar minha pensão, sem o que eu estaria na rua. Dei tanta sorte, que na Rua Silva Telles, bairro do Brás, avistei uma lojinha especializada em estampas em couro para forração de cadeiras. Pedi emprego. O dono, depois de muito pensar por causa de minha pouca idade, atendendo a um sinal favorável de sua mulher, acabou me aceitando para trabalhar. Passados 20 dias, mais ou menos, de tanto ter de me esconder da fiscalização do trabalho, o dono da loja, analisando o risco para me ter como seu empregado e receoso de fecharem sua loja, despediu-me, dizendo ser eu um de seus melhores empregados, mas a multa que levaria era muito grande e ele não podia correr esse risco. Chorei e dirigi os piores palavrões aos fiscais e suas respectivas mães, ao mesmo tempo em que eu ia andando em direção ao largo Silva Telles. Por estar com sede, entrei em uma lanchonete. Do meu lado, tomando não sei bem o que, um senhor meio calvo quis saber o porquê do meu pranto. Contei o ocorrido. Tive a maior surpresa com a reação daquele senhor. Ele praticamente fazia coro comigo, acompanhando-me nos xingamentos aos fiscais do trabalho. Em seguida, colocando sua mão sobre minha cabeça, categórico, para quem quisesse ouvir, falou alto e em bom som: “Eu não tenho medo dessa cambada de ladrões, você precisa trabalhar pra viver? Pois, a partir de agora, considere-se trabalhando novamente, na minha oficina, bem ali” – apontando com a mão – “na esquina da Rua João Theodoro com o largo Silva Telles, e quero ver quem vai se meter na minha frente pra impedir.” Naquele instante, eu passei do choro para o riso, contagiando todos os presentes, que até palmas bateram, dando-me parabéns.
O meu novo emprego era bem diversificado, porque se tratava de um misto de tipografia com corte e vinco – feitio de caixinhas de embalagens. A atenção e o respeito com que eu era tratado nesse emprego davam-me uma injeção de ânimo tão grande, que eu, agradecido, dava tudo de mim em retribuição. Uma coisa, porém, deixava-me intrigado: todos os dias após o almoço, eu via meu patrão surgir de uma portinhola embaixo do balcão em que trabalhávamos. Descobri com o passar dos dias que ali era exatamente o local em que as sobras dos cortes de papéis em geral ficavam depositadas, até serem transferidas para a reciclagem. Por serem bem limpos, os retalhos de papel ali depositados tornavam-se excelente local para uma sesta, um cochilo, explicado, portanto, que meu patrão ali descansava após o almoço. Dessas idas e vindas da pensão para o serviço, um dia encontrei-me com dois conhecidos, que residiam num apartamento diante do prédio do meu antigo emprego, na etiquetadora de latas de palmito. Eles eram uns três a quatro anos mais velhos que eu. Conversa fiada vai, conversa fiada vem; um deles convidou-me para andar de bicicleta. Disse-lhes que não só não tinha uma, como também não sabia andar de bicicleta. “Não tem problema”, disse um deles. “Nós também não temos bicicleta, nós apenas sabemos andar nelas. Portanto, como amanhã vai ser feriado, nós vamos alugar as bicicletas no Mesquita e a gente aluga também uma de mulher para você aprender a andar”. Obaaa! – eufórico – Então eu vou! Combinamos o encontro para o dia seguinte, em uma confeitaria da Rua Rodrigues dos Santos com a Rua Oriente. Quando cheguei, conforme combinado, os dois me esperavam, sentados no chão de uma das portas da citada confeitaria, na qual não havia ninguém: nem no balcão de atendimento, tampouco no caixa para recebimento. Os dois foram ao caixa, pegaram uns dois pacotinhos de moedas, enfiaram no bolso e chamaram-me para ir embora. Na minha cabeça, aquela confeitaria era do pai de algum deles. Somente mais tarde atinei que eles haviam roubado aquela padaria. Só que com tanta naturalidade, que me fez pensar tratar-se de um filho, tendo liberdade e autorização para pegar o que quisessem na hora que bem entendessem. Nunca poderia imaginar que aquilo fosse um roubo. Pior que era!  Creio ter sido a euforia que me causara a possibilidade de aprender a andar de bicicleta que me fez raciocinar daquela maneira. Eles alugaram as bicicletas como haviam dito. E eu, para aprender a andar, levei tantos tombos tentando me equilibrar, que só não desisti de apreender porque eu sabia que tão cedo não teria outra chance igual àquela. Então, mesmo me quebrando todo, aproveitei até o último segundo do aluguel de bicicleta obsequiado, para tentar aprender. Após a euforia do momento, senti-me no dever de contar tudo para o dono da padaria. Mas... Como sempre existe um mas... Fiquei com receio de ser mal-interpretado e sobrar pra mim o ônus da culpa. Pois não tendo ninguém para interferir a meu favor, sem pai nem mãe - solto no mundo, pensei melhor. Mesmo contra minha vontade, deixei de delatá-los. Porque como diz o velho ditado, “a corda sempre arrebenta do lado mais fraco”.
E assim o tempo foi passando, até que um dia meu irmão Luizinho apareceu lá na pensão e falou pra dona que iria me levar pra morar com ele. Com isso, aproveitaria para me ensinar sua profissão de afinador de retratos. Fiquei duplamente contente: primeiro, por aprender uma profissão e, segundo, por sair daquela pensão, na qual me sentia muito injustiçado em relação aos filhos da dona. Contente da vida, lá fui eu pra casa do “Zinho”, nome carinhoso pelo qual costumávamos tratar o Luís. Nessa época, fazia muito poucos meses que ele havia se casado. Sua casa se situava no bairro da Casa Verde, também na capital de São Paulo, e era composta de um quarto, cozinha e banheiro. Durante o dia todo e parte da noite, o Luiz trabalhava em seu próprio quarto de dormir porque, por trabalhar por produção, quanto mais ampliações ele retocasse (afinasse), mais dinheiro ganharia. Zinho montou seu cavalete de pintura nos pés da cama dele, onde também pôs uma prancheta improvisada – meu cavalete – para que eu pudesse aprender sua profissão. O quarto de dormir acabou se tornando o seu – nosso – ateliê. Meu irmão ouvia muito a Rádio São Paulo (enquanto trabalhávamos), que, naquela época, primava pelas novelas. Lembro-me de uma novela cujo artista principal chamava-se Ênio Rocha, considerado o maior galã aventureiro. Outra novela que também me marcou se chamava “Alameda das Acácias 29”, cujo tema é lembrado para os saudosistas: “Num galho de acácias amarelas, uma aranha fez a sua teia...” Ao relatar detalhes dessa que era considerada a emissora das novelas da capital paulista, faço-o; consciente de haver saudosistas que, como eu, tiveram o prazer de ouvir isso e as obras maravilhosas transmitidas, que ficaram gravadas em nossa memória, tais como: “As Mil e uma Noites”, por exemplo, e muitas outras, interpretadas pela nata da dramaturgia radiofônica da época. Como negar valores a atores do mais grosso calibre tais como Odair Marzano, Vilma Bentivenha e uma player de valores que enriqueciam sobremaneira a emissora das novelas “Radio São Paulo” -  que saudade. 
Pelo fato de haver muito pouco espaço físico em sua casa, Luizinho comprou uma cama de campanha, dessas que se usam nos campos de futebol, para tirar jogadores do campo quando eles se contundem; a qual seria armada na cozinha à noite pra eu dormir. Durante o dia, eu aprendia com meu irmão uma profissão, na qual muito cedo – modéstia à parte – tornei-me um especialista. Porém, involuntariamente, creio eu, devo ter acendido o estopim para acabar com a minha permanência na casa do meu irmão Luizinho. O fato de a cozinha da casa do meu irmão não ter forro, facilitava a entrada de um ou outro rato, a ponto deles passarem por cima do cobertor que me cobria, fazendo-me acordar assustado. Como toda criança, eu me apavorava, chutando os bichos com os pés por baixo do cobertor e gritando de medo. Com isto, talvez, eu tenha atrapalhado a vida íntima do casal – somente hoje posso entender isso.  E o desfecho não podia ser diferente: sobrou pra mim!  Disseram-me que meu irmão voltou lá na pensão, e, com lágrimas nos olhos, perguntou se existia vaga para eu voltar a morar lá, porque caso contrário, a mulher se separaria dele. Claro que havia vaga: quem em sã consciência rejeitaria receber por uma criança o mesmo valor que um adulto paga? Nem eu; ninguém rejeita.
Com o meu retorno à pensão, muita coisa mudou. Pra início, o lugar que eu teria de dormir seria embaixo da escada. Por se tratar de casa – sobrado – antiga, o que mais havia embaixo daquela escada era baratas. Como não tinha alternativa, encarei aquela parada, que, na pior das hipóteses, ainda era melhor do que ratos; mas – diga-se de passagem – marcou-me profundamente. Havia noites em que eu passava a maior parte procurando me safar das baratas. Uma vez, acordei com uma quase dentro de minha boca. E lá em cima, no quarto, o filho mais novo da dona da pensão, dormia tranqüilo em um quarto relativamente grande, com duas camas de solteiro e tendo espaço de sobra para acomodar outra. Quando eu tentava ver se pelo menos no chão do quarto dele eu poderia colocar um colchão? A resposta, após dialogarem, era curta e grossa. “Ele é pensionista. Se não esta satisfeito; que procure outra pensão”. Precisando do meu dinheiro e pondo banca. Quando alguma visita ou curioso perguntava quem eu era, a resposta da dona da pensão estava na ponta da língua. “Este aqui? É meu outro filho” – olhando-me com um olhar meigo – “não é mesmo”? E eu, com a cabeça baixa, mesmo sem dizer nada, com um sorriso amarelo, não desmentia. Se eu tivesse coragem e menos educação, com certeza questionaria na frente de todos a veracidade daquelas palavras. Como eu adoraria gritar alto e bom som pra quem quisesse ouvir: “Filho? Nuuuunca!” Uma mãe faz das tripas coração para proteger e privilegiar um filho, o que nunca acontecia comigo. Uma das provas  evidentes e relevantes disso? Era revelada na hora das refeições. Na divisão das partes de um frango, por exemplo! Sempre as piores partes, ou seja: a asa, pé, pescoço, tinham a direção certa do meu prato. Nunca uma coxinha, sobre coxa ou coxinha da asa. Peito então?... Nem sonhar. Esse somente iria para os pratos dos seus filhos. Na divisão dos bifes na hora da refeição?... Não havia a menor dúvida que o menor tinha o endereço certo de meu prato, e sem direito a repetir. A despeito de tudo isso, eu me dava por feliz, porque muitas vezes comiam demais, e não sobrava nem unzinho pra mim. A desculpa? Era minha velha conhecida. “Gente, acho que errei na conta dos bifes, que coisa heim! Bem, coloca aí no seu prato um pouco de salada e tudo bem vai.”
                                                                                                                                           
CAPÍTULO IV
O desenho – profissão e arte
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Ainda bem que existe a lei da compensação, porque meu irmão Luizinho, quando me ensinou a arte de afinador de retratos, indicou-me para trabalhar com um pintor de telas famoso, de nome Paulo Nobre, que, além de pintar telas como ninguém, também trabalhava com um agenciador de retratos, que morava em Rio Claro – interior de São Paulo – e trazia as encomendas para o senhor Paulo pintar ou retocar, cuja afinação, (corrigir imperfeições das faces), ficava sendo tarefa minha e me dava muito orgulho. O senhor Paulo gostava muito de mim. A dedicação com que ele me tratava deixava-me esquecer boa parte das mágoas e tristezas que eu tinha passado desde que fiquei sem pai e sem mãe. Enquanto ele retocava, eu, com um cavalete ligeiramente à frente dele, afinava os rostos, tirando as imperfeições deixadas devido ao processo de ampliação de uma fotografia tamanho 3x4cm para um retrato tamanho 35x50cm, por exemplo. Ele gostava muito também de música lírica. Enquanto trabalhávamos, todas as quintas-feiras, às 11 horas, ele sintonizava seu rádio na Rádio Gazeta de São Paulo, que tinha um programa somente de música erudita, com trechos de ópera, inclusive. De vez em quando, dependendo do cantor que estivesse cantando – os nomes de que me lembro são de Mário Lanza, Benamino Gilli, Hímah Sumak e Herna Sak – o ateliê em que trabalhávamos quase estourava. Devido ao fato de o senhor Paulo adorar bel canto e ser “barítono”, ele colocava o rádio no último volume e, com sua voz potentíssima, cantava junto, enquanto trabalhávamos. Isso pra mim caía como uma bênção. Além disso, o senhor Paulo, além da arte da pintura, ensinava-me impostação de voz para cantar. Quando eu cantava qualquer início de música com a voz impostada – como ele havia me ensinado –, ele vibrava tanto que chegava a bater palmas me incentivando a cantar novamente. Devido ao nosso excesso de ânimo, de vez em quando, sua esposa se deslocava dos seus afazeres para, educadamente, sem dizer uma palavra, olhar-nos, sugerindo com isso que não nos excedêssemos. Na hora do almoço, todos os dias, ela me convidava para que eu almoçasse junto com eles na mesa (aplicada, aqui, a lei da compensação). Dona Sicca – esse era o nome pelo qual seu marido carinhosamente a chamava – acomodava todos na mesa, senhor Paulo, ela própria, os três filhos, - Reinaldo, Maria Amélia e Henrique -, incluindo-me no grupo. Lembro-me de que Maria Amélia deveria ter naquela época seis ou sete anos, mais ou menos. O Reizinho – assim era chamado Reinaldo –, uns 11 anos, e o Henrique, uns 13 anos, aproximadamente. Nem por isso, eu era preterido em relação às iguarias que eram servidas no almoço. Devo admitir que grande parte da educação que até hoje possuo devo à convivência que tive com essa abençoada família – que saudade!
Para me deslocar da pensão até meu local de trabalho, todos os dias, eu percorria uma distância de uns quatro quilômetros andando a pé até chegar à Avenida Celso Garcia e pegar um bonde (Belém), que me levaria até a Rua Herval, onde ficava meu trabalho. Eu morava na Rua Silva Telles, no Brás, e trabalhava no Belenzinho. Recebia por produção. Se trabalhasse e produzisse – afinasse – bastantes retratos, ganharia razoavelmente bem. Do contrário, nada, porque eu não tinha nenhum ganho fixo. Por mais que eu me esforçasse, eram raras as semanas que eu conseguia uma retirada após descontar o dinheiro da pensão, que era sagrado. Dificilmente me sobrava dinheiro para comprar alguma roupa. Certa vez, tive de ficar deitado embaixo das cobertas, sem roupa, esperando meu calção secar no varal. Tenho até vergonha de dizer a razão, mas acontece que, num dia de sábado, instalou-se uma feira a cerca de 50 metros de casa. Eu e alguns colegas passeávamos em volta das barracas. Eu havia tomado purgante (óleo de rícino) havia pouco tempo, razão pela qual não tinha ido trabalhar. Meus coleguinhas, não sei explicar o porquê, iniciaram uma guerra de tomates podres. Quando, no meio das barracas, abaixei-me para pegar do chão um tomate para revidar, um feirante veio por trás e me deu um chute no traseiro tão violento que me desgovernou, a ponto de, ao mesmo tempo em que eu corria pra casa, ir deixando um rastro do efeito do purgante com xixi pela calçada. Como eu tinha apenas um calção, não deu outra. Enquanto não secasse da lavagem, eu não poderia levantar-me da cama.
De outra feita, perguntei a possibilidade de pagar um pouco menos pela pensão, devido ao fato de almoçar todo dia no trabalho. A intenção era que me sobrasse algum dinheiro para comprar roupas. A resposta, cortante, veio da parte de uma das filhas da dona da pensão: “Está cheio de pensões por aí. Caso não esteja contente, a porta da rua é a serventia da casa!” E ainda diziam que eu era tratado como filho – imaginem se não fosse! Mais uma vez, tinha que engolir a seco e calar a boca, indo chorar escondido, abafando meus soluços com meu travesseiro, pois não tinha quem interviesse a meu favor. Meus irmãos? Não me visitavam nem pra saber se eu estava vivo. A realidade nua e crua era que eu tinha de me virar de qualquer maneira pra sobreviver. Procurei, a partir da premissa de que somente poderia contar comigo mesmo, apegar-me com unhas e dentes ao meu serviço no sentido de aperfeiçoar o máximo possível cada retrato que vinha a minhas mãos. Minha fama de afinador espalhou-se entre os melhores retocadores, os quais queriam que eu trabalhasse para eles. Como trabalhar com o senhor Paulo Nobre estava ficando cada vez mais difícil, por eu ter de produzir mais para poder arcar com os vencimentos necessários a minha subsistência, achei por bem ensinar minha profissão a um colega. Meu objetivo seria deixá-lo em meu lugar com o senhor Paulo Nobre, pagando assim, com gratidão, aos ensinamentos advindos dele, não o deixando totalmente na mão. Depois eu encontraria alguma maneira de aumentar meus vencimentos e arcar com minhas despesas essenciais.
Aos domingos pela manhã, eu jogava bola pelo grupo infantil do Esporte Clube União Silva Telles (o vovô da várzea) e tinha um colega chamado Liberato Farina (Tato), um pouco mais velho do que eu, também jogador, mas numa categoria superior à minha – juvenil e esporte. Ciente de que ele gostaria de aprender minha profissão, convidei-o para ir comigo todos os dias trabalhar que eu lhe ensinaria meu serviço na íntegra. O senhor Paulo Nobre tinha autorizado minha atitude. Passados alguns dias, Tato estava tinindo em matéria de afinação. Daí em diante, passei a trabalhar com outro pintor de telas, também de renome, chamado Romeu Caiani, respeitadíssimo por seus trabalhos em tela. Seu ateliê situava-se na Avenida Celso Garcia, diante do Instituto Disciplinário. Sua produção de retratos policromados pintados com tinta a óleo era grande, devido à contribuição de outro pintor, senhor Hélio. Assim, eu deitava e rolava nas afinações, ganhando dinheiro como água. Passei a comprar roupas finas, terno feito sob medida em alfaiate – o branquinho –, blusões, camisas esporte e social, sapatos de cromo alemão – deixei de usar alpargatas. Enfim, dei uma guinada de 90 graus. Na pensão, como sempre, jogavam-me na cara como se fosse um xingamento a frase: “você é pensionista”; então, passei a me portar como tal. Dava somente o dinheiro que era estipulado como pensão. Antes, entregava todo o dinheiro que ganhava à mulher da pensão. Mesmo assim, nunca tive algum privilégio durante o tempo em que lá permaneci, nem ao menos na comida.
Indicaram-me também naquela época outro pintor renomado, de nome Paulo Ansaldi, que queria que eu afinasse alguns policromados, pinturas de ampliações de fotografias feitas a pincel e tinta a óleo em seu ateliê, situado num prédio de apartamentos na Avenida Ipiranga, onde também ficava sua residência. Igual aos pintores anteriores, Paulo Ansaldi era um senhor de fino trato e costumes. Como eu executava sua produção de pinturas em dois ou três dias, sobrava-me tempo suficiente para dar conta de outros trabalhos. Quando a quantidade de serviço era muito grande, eu levava as produções para fazer num cantinho da despensa na pensão, trabalhando até altas horas da noite. Com o inconveniente de ter de ouvir rotineiras reclamações: “Apaga essa luz aí! Como é? Você vai demorar muito com isso aí?” A verdade era uma só: tanto a dona da pensão como seus filhos tinham o gosto de questionar tudo que eu fizesse, pelo simples prazer de fazer valer sua autoridade. Eu tinha roupas bonitas, e o filho mais novo da dona tinha a mania de usá-las sem a minha permissão. Eu me desforrava nele mandando-o tirar imediatamente minhas roupas do corpo. Aí é que pegava “fogo na canjica”. Juntavam-se mãe e irmãs a defenderem o rapaz. Uma das irmãs dizia ao irmão: “Você não precisa dessa porcaria de roupa!” Gritava: “Joga essa m... na cama dele e nunca mais use nada dele, ouviu?” Como se não bastasse, também a mãe aproveitava o ensejo, fazendo-se de vítima. “Ai, gente, eu não agüento mais... eu sou uma desgraçada... não sei por que eu não morro!” E fingia puxar os cabelos. Fato inusitado, o filho mais velho, vendo o tamanho daquela ignorância, veio em meu favor – ao menos uma vez, ufa! “Vocês estão erradas, o Primo está coberto de razão. Ele compra as roupas com o suor do rosto dele pra poder usá-las quando precisar. Quando chega essa hora, suas roupas estão sujas, porque usaram sem sua permissão! E vocês ainda querem ter razão? Ora, façam-me o favor!” Desse dia em diante, passei a ter um aliado. O marido da dona da pensão não tinha boca para nada. Era o verdadeiro anjo em pessoa. O filho mais velho, casado, exatamente o que veio em minha defesa no caso das roupas citadas, apoiava-me em tudo. O outro filho, solteiro, um pouco mais novo, quase não opinava também, tal qual o outro filho ligeiramente mais novo. A encrenca e falsidade mesmo vinham da mãe, filhas e do filho menor, que fazia chantagem emocional, com reclamações a meu respeito, instigando-as contra mim. Usando meu jogo de cintura, eu ia engolindo um sapo aqui, desforrando de alguma maneira ali, chorando minhas tristezas e lembranças de minha família lá e levando uma vida solitária e amargurada, sem ter com quem desabafar. E dizer que eu tinha oito irmãos espalhados cada um pra um canto de São Paulo... Dói ou não dói? Meus aniversários, muitas vezes, passavam despercebidos até por mim, dada a pouca atenção que meus familiares me dispensavam.
Quando eu tinha algum dinheiro sobrando, coisa bem difícil, eu pagava uma pizza para alguns colegas, que eram quem, nessa altura dos acontecimentos, eu tinha. Festejava meu aniversário com alguns pedaços de pizza junto a eles. Pelo menos, momentaneamente, eu recebia um carinho. Mesmo não sendo de minha família, enganava meu coração e me deixava um pouco feliz. O chato de tudo isso era quando eu ficava só. Meus amigos iam cada um para sua casa e eu, sozinho, voltava a minha realidade – agüenta travesseiro. Nunca deixei ninguém perceber que eu chorava – porque homem que é homem não chora – e não iria ser eu a exceção, mas que eu chorava, chorava. Devo dizer que nessa fase de minha vida, dentre vários colegas, havia um que morava a uma quadra de minha casa, que se chamava Flávio. Ele tinha um irmão de nome Gilberto – mais novo –, regulando com minha idade, e, esporadicamente, convidava-me para nadar nas piscinas do Clube de Regatas Floresta, Antigo Clube Spéria. Alguém de sua família devia ser sócio e, graças a isso, eu tinha o privilégio de ser convidado de honra. Por causa desse obséquio, eu me esbaldava naquelas maravilhosas piscinas. De tanto beber água delas, acabei por aprender a nadar um pouquinho. Outra amizade que me traz boas lembranças foi a de Marcos Borlenghi, filho do dono de uma empresa de transportes de nome Guido Borlenghi, situada em uma esquina da Rua Cachoeira com a Rua Silva Telles, no bairro do Brás. Ele pegava um dos FNM “cara chata” – fenemê, popularmente falando – da empresa de seu pai, mandava-me subir na boléia e dávamos algumas voltas pelo bairro do Brás e Pari, deixando todos que nos viam passar boquiabertos, devido à capacidade de dirigir que o Marcos tinha, levando-se em consideração que ele era relativamente pequeno no tamanho e tinha mais ou menos uns 14 anos de idade. Costumeiramente, jogávamos pelada em um campinho, um terreno baldio também perto de minha casa (pensão) na Rua Silva Telles. O ponto alto disso tudo recai sobre outro colega, que me chamava bastante a atenção. Seu nome era Cadhemar, seu pai tinha uma lojinha especializada em artigos de borracha, situada na Avenida Rangel Pestana, ali nas imediações em que se situava o antigo Cine Santa Helena. Quem for dessa época irá se lembrar. Quando jogávamos as peladas, raro era o dia que uma partida fosse até o fim. Cadhemar encrencava com seus colegas de time ou com o time adversário e saía descendo o braço sem dó nem piedade em quem viesse pela frente. Fosse grande ou pequeno, ele encarava, apelando inclusive para golpes baixos, que sou impossibilitado de citar para não baixar o nível mais do que já baixei. Só sei dizer que ele acabava deixando seus próprios colegas de time receosos por causa de seus arroubos de violência. Mas, dali a pouco, lá estávamos todos juntos novamente. Na maioria das vezes, eu também participava das peladas e comumente também da pancadaria – quem podia mais chorava menos.
Certo dia, depois de uma boa briga entre amigos, os nervos acalmados, alguém sugeriu que fossemos nadar no Rio Tietê, embaixo da ponte da Vila Guilherme. Quando já estávamos chegando ao começo da ponte, vinha também chegando um furgão azul da companhia de doce Confiança, veículo que tinha somente porta em sua traseira. Um dos meninos, não lembro exatamente qual, assim que o furgão de doces começou a entrar na ponte para transpô-la, subiu com o carro em movimento, abriu a porta e foi jogando caixas de chocolates para outro, que corria ao lado, no ritmo que o furgão andava – devagar – para ir recebendo as caixas de doces jogadas. Após atravessar a ponte, o motorista do furgão nem podia imaginar que havia sido roubado nem como sumiram as caixas de doces. Após esse mau feito, como que se não houvesse acontecido nada de anormal, eles distribuíram chocolates para todos à vontade, até ao exagero. Depois de nos fartarmos de tanto comer, iniciou-se uma guerra de chocolates. Alguns, mais afoitos, atiravam-se de cima da ponte para não serem atingidos pelos chocolates. Ao mergulhar naquele rio – que já naquela época era bastante poluído – voltavam com suas cabeças lambuzadas de fezes. Um nojo de lembrança, essa.  A partir desse dia, vi que não poderia mais participar daquele grupinho de amigos. Como a corda sempre estoura do lado mais fraco, adivinhem de que lado estouraria? Isso mesmo, do meu lado. Achei melhor dar um basta naquilo enquanto ainda era tempo.
Passei a freqüentar o Esporte Clube União Silva Telles, o “Vovô da Várzea”. À noite, quando eu não tinha retratos extras para afinar, dirigia-me para a sede do clube, que ficava na Rua Bresser, na frente da Rua Santa Rita, no bairro do Brás. Lá ficava eu, jogando tênis de mesa, entre um grupo de amigos bastante diferente do anterior. Aos sábados à noite e domingos à tarde, costumava haver baile para os associados, e o pé-de-valsa, aqui, estava lá de prontidão, com um terno feito pelo Branquinho, meu alfaiate, camisa para gravata de pêlo de pêssego, sapato “scatamachia”, de cromo alemão, e colônia Sonho de Pinho. Eu alugava uma mesa estratégica no salão, colocava um cuba-libre em cima da mesa e, se Deus ajudasse, já seria covardia. Lá ia eu esnobar minhas qualidades de dançarino no auge da rumba, mambo, bolero e samba. Devido à maneira que eu costumava me trajar, apelidaram-me de “Panca”. Daí em diante ninguém mais me conhecia por Primo, meu nome de nascença. Em época de festas juninas, eu participava da quadrilha, trajado a caráter, caipira. Os amigos, com os quais eu mais tinha afinidade eram o Cláudio, que trabalhava de contínuo num escritório, na Rua São Bento, no centro de São Paulo; o Milton, propagandista e entregador de amostras do laboratório Roche; Cezar, escriturário de um banco. E também Luís Merllo, que às vezes era nosso goleiro do time juvenil, outras vezes do esporte (categoria existente no clube tida como a melhor), com quem aconteceu um fato muito interessante, fora do clube. Ele era técnico de som da Rádio Nacional de São Paulo, quando suas instalações eram na Rua Sebastião Pereira (Rua Das Palmeiras), onde também trabalhava seu pai, Senhor Victorio, como porteiro.
Certo dia, o Luís convidou-me para ir com ele conhecer a rádio, que era muito famosa na época. Após ter percorrido suas instalações, levou-me á sala da técnica, onde deveria gravar uns jingles com vinhetas de chamadas, que deveriam ser utilizadas no transcorrer do dia, conforme a programação da emissora. Dentro do aquário – como era chamada a sala da técnica de som – estávamos eu e o Luís, que devia ter entre 19 e 20 anos de idade. Nessa gravação, o locutor estava lendo um roteiro, em cima do palco do auditório da Rádio Nacional. O técnico era quem gravava era justamente o Luís Merllo. Por se tratar de gravação, não poderia haver erro, fosse de leitura ou de inflexão de voz. Quando isso acontecia, o Luís tinha de voltar a fita do gravador e dar novamente o sinal para o locutor começar tudo de novo. Depois de uns cinco ou seis erros do locutor ao ler as chamadas, o Luís passou a ficar nervoso e descontrolado. Insultava tanto o locutor lá de dentro da técnica, com palavrões, que sou impedido de registrá-los aqui. O locutor por sua vez, meio sem jeito, recebendo toda aquela humilhação, vermelho que só, desculpava-se novamente e começava tudo de novo, tentando não errar pra não ser desfeiteado. Sempre tive em mente que o locutor deve ter ficado tão magoado, que forjou, daquelas humilhações todas, uma alavanca com a qual trabalhou ferrenhamente, removendo montanhas para crescer e ter o prazer de, um dia, dar o troco por toda aquela ofensa recebida. Algum tempo depois, ele se tornou o patrão – e que patrão. Quem me garante que ele não teve o prazer de mandar o Luís embora da emissora só pra se vingar? Eu faria isso. Se vocês que me lêem não adivinharam de quem se trata, eu vou dizer: o locutor em questão chama-se Sílvio Santos, Segnor Abravanel. Se eu deixar de citar um ou outro amigo nestes meus relatos, tenho a declarar que não foi em razão de importância, mas por falta de um espaço mínimo razoável para que eu pudesse explanar os pormenores dos fatos na íntegra, comentar os frutos de uma convivência salutar digna de ser reportada, que considero de suma importância, porque dada a criação que demonstraram ter recebido de seus pais. Indiretamente, esses amigos serviram-me de exemplo.
Uma vez, Milton me levou até o laboratório em que ele trabalhava e pegou um pacote de amostras, que deveriam ser entregues nos consultórios e constavam de uma relação que lhe foi entregue. Acabamos entregando juntos as amostras. De outra feita, o Cláudio convidou-me pra conhecer o serviço dele. Lá chegando, ele datilografou algumas coisas, pegou uns documentos e fomos a vários bancos, onde ele deveria sacar ou depositar algum dinheiro. Meu amigo Cezar, por sua vez, quando um ou outro baile de sábado lá no clube terminava um pouco mais tarde, convidava-me pra dormir em sua casa. Como jogávamos futebol no dia seguinte – ele no juvenil do Silva Telles e eu no infantil –, matávamos dois coelhos com uma cajadada. Outro amigão que não poderia deixar de citar é Alceu. Também foi no clube que o conheci. Ele me disse que trabalhava com seu irmão, que tinha um estúdio fotográfico, bem próximo dali, e me convidou para conhecê-lo. Aceitei o convite e fui. Eduardo, irmão de Alceu e dono do estúdio, estava sentado com a cabeça dentro de uma espécie de cabaninha, com uma luz por trás de um vidro “leitoso”. Ao ver que eu estava curioso, brincou comigo dizendo: “quer trabalhar um pouquinho?” Deu-me um lápis, com uma ponta parecida com uma agulha, já velho conhecido meu, mas Eduardo e o Alceu não sabiam disso. Peguei aquele lápis e uma lixa bem fina que estavam em cima da mesinha. Cortei uma tira, dobrei-a ao meio e enfiei a ponta do lápis dentro dela, fazendo movimentos circulares com a mão esquerda e movimentos horizontais para frente e para trás com a mão direita. Deixei aquela ponta de lápis tão fina, que eles adotaram meu sistema de afiar lápis naquele instante. Como o Eduardo havia me convidado pra trabalhar um pouquinho – se bem que de brincadeira –, eu não dispensei o convite e me sentei, colocando a cabeça naquela “cabaninha”, com um pano preto que evitava claridade dos lados. Quando olhei bem de perto, notei seis negativos de fotografias 3x4. Eduardo, rindo, voltou a dizer: “Bem, no lápis você sabe fazer ponta fina como ninguém, agora eu quero ver se você sabe retocar também.” A palavra retocar soou como música a meus ouvidos. Disso eu sabia até demais. Só que aquilo a que os fotógrafos chamavam de retocar para mim não passava de uma simples afinação que apenas se incumbe de tirar as imperfeições da face, ao passo que o trabalho que eu fazia era pintar a roupa, cabelo, fundo do retrato, etc. Então, peguei aquele lápis, afinei mais ainda sua ponta e larguei brasa. Passados alguns minutos, não sem todo instante Eduardo enfiar a cara dentro do retoquino (nome daquela cabaninha) para se certificar de que eu não estava fazendo alguma besteira que pudesse prejudicar aquele negativo, entreguei o lápis de novo para o Eduardo e lhe disse-lhe: “Isso que você chama de retocar, que você faz nos negativos 3x4, eu costumo fazer também, mas em retratos reproduzidos em tamanhos normalmente de 35x50 e com outro nome: afinação. Eu trabalho com retratos, ampliações pintadas em positivo, ao passo que você trabalha com tamanhos infinitamente menores e em negativos.” Eduardo, admirado pelo serviço que eu havia feito, segundo ele em tempo relativamente curto, ainda brincando, pegou uma caixa de papelão parecida com essas de guardar camisas, cheia de negativos de tamanhos variados, e me disse: “Você não vai embora, não. Pode sentar aqui no meu lugar e retocar pra mim, que eu vou lhe pagar um bom dinheiro.” Sem pensar duas vezes, aceitei o convite, não sem antes dar uma satisfação plausível aos pintores para os quais eu trabalhava. A partir desse dia, além de retocador, passei a exercer também as funções de fotógrafo, aliás, foi um pulo. Trabalhar com o Eduardo foi uma das boas coisas que aconteceram comigo. Primeiro, por se tratar de estar trabalhando a mais ou menos dez quarteirões da pensão em que eu morava; segundo, porque, devido à prática que eu já havia adquirido com os pintores, retocar negativos de fotografias era uma moleza.
Eu trabalhava para Eduardo, no Foto Schimidt, em regime de produção. Os negativos que eu retocava eram anotados num caderno em separado; quando chegava o fim da semana, somávamos o total dos serviços executados e eu recebia por aquilo. Daí pra frente, meu padrão de vida mudou de um salto. Animado com a facilidade que eu tinha de retocar negativos e sabendo que, quanto mais eu retocasse, mais dinheiro ganharia, procurei dar o máximo de mim, chegando a levar fotografias de reportagens de casamentos para fazer em casa em algumas noites. Sempre que eu quisesse adquirir alguma coisa, dentro de meu padrão de vida, claro, eu procurava produzir mais, para ganhar o dinheiro suficiente e coroar com êxito meu objetivo. Na medida em que eu ia comprando um sapato novo ou uma camisa nova, lá na pensão já começava aquela ladainha famosa da dona: “Aí, gente! (com as mãos na cintura) As coisas estão aumentando tanto, que esse valor de pensão não está dando, não. Mês que vem vai ter aumento.” Para complementar, uma das filhas – a mais nova – intrometia-se como se fosse a dona da verdade, dizendo: “É isso mesmo, mãe. Quem não quiser, a porta da rua é serventia da casa.” “Quem tem dinheiro pra estar comprando roupas e sapatos caros pode muito bem pagar mais.” Eu ouvia tudo calado, como sempre. Se ao menos algum irmão dos muitos que eu tinha me visitasse de vez em quando, eu teria alguém que, pelo menos, na pior das hipóteses, dissesse algo em meu favor. Argumento para rebater ou questionar, eu tinha até demais. Mas, como eu era uma criança, tinha que ver ouvir e calar. Se eu pudesse fazer valer minha voz...
O filho solteiro mais velho não dava dinheiro em casa porque estava noivando e precisava juntar dinheiro para se casar. O outro, ligeiramente mais novo, com a desculpa de estudar para tentar entrar na guarda civil, não dava também nenhum. A moça mais velha vivia mudando de emprego – balconista – e, com isso, a grana, dinheiro, que era bom, nada. A mãe disfarçava, insinuando que a filha comparecia com algum, mas não me convencia. A única que podia pôr banca, entre todos na casa, era a filha mais nova. Essa, verdade seja dita, nunca a vi desempregada. Já o menino, cuja idade regulava mais ou menos comigo, pelo que me lembro só trabalhou um pequeno período – um ano mais ou menos. O resto do tempo enrolava todo mundo. Para passear, só não usava meus sapatos, porque seus pés eram maiores. Mas minhas roupas ele usava, aliás, com a conivência de sua mãe e irmãs. E ai de mim, se reclamasse! Todos se juntavam em sua defesa. Em suma: o único que não dava mancada com dinheiro naquela pensão era eu. Mesmo assim, caso houvesse um atraso de pagamento que fosse apenas de dias, meu ouvido virava um verdadeiro penico de tanta “M” que eu ouvia. A pessoa por quem eu mais tinha respeito naquela pensão era justamente o patriarca da casa. Homem de origem humilde e de educação exemplar, sem mentiras ou falsidades. Quando todos esbravejavam, ele apenas ouvia e olhava com muita discrição, mas seu olhar dizia muito mais do que as palavras. De uma frase que ele dizia muito quando simulava uma repreensão a alguém, lembro-me com carinho e até hoje a repito: “Esse pamonha, é isso, esse pamonha não vê que está errado? Precisa ter o pamonha para o ladino viver.” Pamonha era a ofensa mais grave que ele sabia dizer. Exemplo digno de ser copiado.  
Certo dia, ao voltar da rua em um horário não costumeiro, havia uma reunião na cozinha. O senhorio (dono) da casa a queria de volta por não haver acordo quanto a um aumento de aluguel. Deus escreve direito por linhas tortas. O burburinho continuava lá na cozinha e eu, escondido, ouvia tudo. Eles diziam que, na hipótese de se mudarem para Santo André, na divisão dos quartos, eu ficaria sobrando, por se tratar de ser uma casa menor que a atual. A solução – fria e calculista – partiu de uma das filhas da dona da pensão, a mais nova, que, com naturalidade, disse em alto e bom som: “É o seguinte: a casa comporta apenas nós. Portanto, o Primo é pensionista, e que se vire em outra pensão por aí.” Nesse instante, o filho mais velho interferiu: “Vocês não estão em condições de estar pondo toda essa banca, não. Só dois estão trabalhando aqui nesta casa. E o dinheiro do Primo faz falta, sim.” E prosseguiu: “Onde eu faço reuniões de minha religião, além do salão que eu uso, há três cômodos grandes com espaço de sobra para o Primo também. E digo mais: não é embaixo da escada, não. E se houver mais alguém, espaço não falta. Há também uma sala, cozinha e uma área de serviço em cima da laje, porque é um sobrado. O único inconveniente é ter somente um banheiro, que quando houver reuniões, terá de ser usado por todos. Se vocês quiserem, eu divido o aluguel com vocês até o dono do imóvel cismar de pedir para reforma.” Como o valor do aluguel era bem menor e conveniente, todos concordaram. Nesse instante, simulei que acabava de chegar.  O filho mais velho deu-me umas tapinhas nas costas e sorrindo disse: “Primo meu velho: de hoje em diante você deixará de dormir embaixo da escada.” Fingi não entender e perguntei: “Por quê?” Nisso, como se não tivesse havido nada de anormal, todos disseram quase que em coro: “Porque vamos mudar para uma casa maior, o que você acha?” Sem deixar que percebessem que já sabia, respondi: “Ah, é?”, de forma displicente. “Por mim, tudo bem”, sem aparentar qualquer animação ou alegria. Ao estranharem minha reação, alguém perguntou: “Parece que você não ficou contente?” Respondi sem entusiasmo: “Claro, fiquei contente, sim, claro.” Aquele tinha sido mais um sapo que eu havia engolido.
Após trabalhar uns cinco anos mais ou menos no Foto Schimidt, surgiu uma oportunidade de fazer um teste para uma vaga de distribuidor de materiais na Estrada de Ferro Santos a Jundiaí RFFSA, em um dos depósitos de materiais da Lapa. Participei de todas as provas do processo de seleção. Passei e fui trabalhar na ferrovia. Junto comigo, havia outro participante, chamado Batista, que foi colocado para trabalhar com o Almoxarife Chefe daquela repartição, Senhor Ribeiro, em uma escrivaninha bonitinha, limpinha, com uma máquina de escrever. Nada como ter um QI (Quem Indica)... Quanto ao bobão aqui, jogaram em um depósito de materiais sem o mínimo de limpeza, perdendo de dez a zero, se comparado aos meus trabalhos anteriores, nos quais, além de prevalecer à limpeza, sempre fui respeitado em todos os pontos de vista. Logo em meu primeiro dia de serviço, no depósito de materiais onde disseram que eu devia trabalhar, o chefe, de nome Rabelo, dirigiu-me um olhar tão frio, sem ao menos me dizer bom dia, que já revelou o grau de ignorância que reinaria naquele local de trabalho. Tudo ali, para mim, era completamente estranho, portanto, eu deveria merecer um mínimo de compreensão por parte do dirigente, ensinando-me os pormenores, orientando-me para que eu pudesse exercer aquela função que me foi destinada da melhor maneira possível. Infelizmente, isso não aconteceu. Para trabalhar, eu tinha de me levantar às 4h30min, pegar um ônibus até a estação da Luz, pegar um trem, que me deixaria em meu local de trabalho, na Lapa, faltando mais ou menos cinco minutos para as sete horas da manhã. Às 11h, aglomerava-se uma fila de empregados diante da máquina de picar cartão para, em seguida, sair correndo pelos pátios atrás de esquentar suas marmitas. Como eu não podia levar marmita – porque morava em pensão – tinha exatamente uma hora para sair correndo ao lugar mais próximo do serviço e comer. Eu sempre me dirigia a uma casa que servia refeições, distante uns mil e quinhentos metros do meu serviço. Mal tinha tempo de mastigar e já voltava correndo para picar o meu cartão. Caso contrário: se tivesse atraso de um minuto em dois dias da semana, não precisava ir ao trabalho no dia seguinte porque o dia seria descontado. Como se não bastasse todo esse meu sacrifício, ainda tinha que ficar adulando todo mundo lá dentro para cada serviço que eu devesse realizar. A má vontade era geral. Parecia até que eu era um cachorro sarnento. Ninguém queria saber de me ensinar nada. O mesmo não acontecia com o outro, que entrou junto comigo. Ele recebia tratamento de chefe de departamento. Fiquei sabendo que ele era indicação do chefe do Departamento de Distribuição de Materiais. Um dia, mandaram me chamar ao telefone, avisando-me de que o marido da mulher da pensão em que eu morava havia falecido. Como eu sentia muito carinho por ele, deixei o serviço e fui para a pensão. Senti demais. Por que não dizer que chorei um bocado por aquela pessoa pela qual eu nutria muita simpatia e respeito? Quando chegou o dia do pagamento daquela merreca que eu ganhava naquela época, que equivalia nem à metade do que eu conseguia faturar retocando, descontaram-me o dia que perdi, o que eu considerei injusto, virei um bicho. Cansado de ser tratado sem o mínimo de consideração, insultei todos os falsos colegas de trabalho e pedi minha demissão sem pestanejar. A não ser pelo registro em carteira de trabalho, o que não foi mais que obrigação da empresa, aquele serviço que eu pensei ser uma alavanca para meu futuro só me fez foi desacreditar ainda mais dos que nos cerca – pelos maus pagam os bons.
Voltei a minha antiga, mas rentável profissão de retocador e fotógrafo, indo trabalhar com outro fotógrafo conhecido, de nome Bonçalo, no Foto Bonçalo, que se situava na Rua Maria Marcolina, no Brás. Confesso que nunca havia visto nenhum fotógrafo tirar tanta fotografia de casamentos como seu estúdio fotográfico, aos sábados. A partir das 16 horas, chegava a haver fila de casais aguardando para serem fotografados, terminando somente após as 23 horas. Com isso, acabei especializando-me na arrumação dos casais, especialmente nos vestidos das noivas para que a fotografia não cortasse parte de sua cauda. Nessa época, os casais costumavam se casar no civil e religioso – que saudade! O mês de maio era considerado o mês das noivas, preferido para os enlaces matrimoniais. Contente por ter voltado a ganhar, com meu esforço, o dinheiro que, naquele tempo, satisfazia todas as minhas necessidades de rapaz, eu levava minha vida repleta de amigos, sempre freqüentando o Clube Silva Telles, com seus bailes comentadíssimos naquela época. O réveillon, no fim de ano, então? Não existia igual. As orquestras que animavam os bailes eram as mais famosas. Só que, em todos os bailes de réveillon, quando todos confraternizavam, eu ficava praticamente sozinho, porque todos os meus amigos iam para suas casas para abraçar seus pais e familiares. Eu, como não tinha família, ficava sem saber a quem me dirigir no meio daquele salão, que acabava ficando ainda maior devido à minha solidão. O clube ficava somente com a orquestra, os garçons e eu. Havia mais três datas, além do réveillon, em que eu ficava muito amargurado. A primeira era o dia 14 de outubro, data de meu aniversário, no qual nunca tive um mísero bolo. Quando eu recebia uns parabéns chochos, era porque eu dizia que estava aniversariando ou, com algum dinheiro, pagava uma pizza para os amigos. Caso contrário, ninguém se lembraria ou saberia que eu existia. A segunda era o Natal, que sempre marcou minha existência, porque nunca ganhei presente. Vinha-me à mente o caminhãozinho de madeira, único brinquedo que ganhei em toda minha vida, exatamente quando minha mãe estava sendo velada na sala de minha casa. A terceira data: Dia das Mães, no qual não consigo descrever minha angústia, por nunca ter podido presenteá-la e abraçá-la, sentimento intensificado pelo incompreensível esquecimento de meus irmãos para comigo.
Passados aproximadamente dois anos trabalhando no Foto Bonçalo, em um dia de véspera de Natal, noite de ceia, o senhor Bonçalo e sua esposa pediram para que eu ficasse na casa deles à noite, para fazer companhia a uma irmã dele, porque eles iriam passar a ceia em outro lugar. Concordei e dormi em um sofá da sala. No dia seguinte, ao retornar, agradeceram-me, e sua esposa deu-me um embrulho, dizendo que era um presente para mim. Aceitei meio desconfiado, pois o papel que o envolvia era de embrulhar carne, todo amarrotado, que só com um toque se abriu, revelando uma camisa bem maior que o número que eu usava, de um tecido verde bem claro, com o colarinho todo desbotado – devia ter ficado muito tempo exposto ao sol. Tive a impressão de que ela havia me classificado como o último dos mendigos. Não acredito que ela, levando-se em conta o tempo que trabalhei com eles, não tivesse notado que as camisas que eu usava eram confeccionadas sob encomenda, feitas pelo melhor camiseiro daquela região, de nome “Camisaria Giron”. O pitoresco dessa história é que nem o filho da dona da pensão, que só usava minhas camisas, nem ao menos uma vez pegou essa. Por me sentir ofendido pela falta de consideração com a minha pessoa, sem dar satisfação, já que eu não era registrado, fui trabalhar no Foto São Bento, na rua do mesmo nome, só que em um padrão de serviço bem inferior, por se tratar de fotografias tiradas na hora para documentos. O inconveniente desse serviço era a distância. Depender de condução para trabalhar em São Paulo significava ficar no mínimo uma hora e meia ou mais no trânsito para se chegar ao destino. Por outro lado, trabalhar com o filho do dono de um foto na Rua São Bento, Zezinho, encarregado da gerência do estabelecimento, significava ter como me distrair, devido aos aprontos dele com uma ou outra garota, que, aliás, ele tinha até demais. Por intermédio do Zezinho, acabei conhecendo o Jóquei Clube de São Paulo pelo qual ele era apaixonado. Ele também me ensinou a jogar nos cavalos. Mas, como meu dinheiro não era capim, após perder em três páreos, eu parei de jogar definitivamente. Quando voltava do serviço para casa, após tomar banho ia encontrar-me com meus colegas costumeiros, em uma lanchonete que ficava na esquina da Rua Silva Telles com a Rua Rio Bonito. Lá, jogávamos bastante conversa fora, muita gozação sobrando pra todo mundo e, às vezes, um boxe que a TV Gazeta transmitia. Nessa época, havia um pequeno grupinho que queria se infiltrar entre nós. Mas, nossa turma, composta de dez a 15 pessoas, mais ou menos, não lhe dava oportunidade, porque era um grupo que já começava a fumar maconha, na linguagem deles, “puxar um fuminho”. Os colegas que iam aderindo ao vício eram isolados da nossa convivência. Pode-se dizer inclusive que o uso da maconha propriamente dita em São Paulo teve como nascedouro os bairros do Brás-Pari e Canindé, naquela época, ali, bem embaixo dos nossos olhos. Se tivesse havido uma força-tarefa direcionada, com muita seriedade e responsabilidade por parte das autoridades competentes do período, aquele princípio de “câncer” poderia facilmente ser extirpado e curado, evitando que se ramificasse e se alastrasse ao ponto incurável a que chegou. Faltou, portanto, estratégia de combatividade.
Hoje, quando vejo crianças, jovens e adultos usarem essa droga ou outra qualquer, quase não acredito. Ao mesmo tempo, sinto-me incapaz de discernir se meu sentimento é de dó ou de raiva de quem se droga. Oportunidades para experimentar maconha e outras drogas, eu tive até a exaustão. Dizer que esse ou aquele infeliz que puxa fumo, cheira cola, fuma crack, usa cocaína ou tem outros vícios, associando-se a isso inclusive roubar e matar, faz isso porque não tem ninguém por ele, é sozinho no mundo, a mãe bebe, os pais são separados, o pai bate na mãe, etc., não passa de uma desculpa esfarrapada e cabeluda, desprovida de fundamento e convencimento lógico aceitável, usada ultimamente como muleta para justificar o inaceitável, que é o vício em si. Como se não bastasse, meia dúzia de metidos a entendidos, ávidos de aparecerem na mídia, endossa essa desculpa, dando receitas mirabolantes que os pais devem seguir para que seus filhos não enveredem para o caminho do vício e criminalidade. Isso deixa as cabeças dos pais que não se enquadram nessa situação, mas com filhos que caíram nessa má vida, imaginando também ter alguma culpa. Mais razões e justificativas do que as que eu tive pra entrar no vício e criminalidade não há. Nem por isso optei pelo caminho do vício, da droga ou da marginalidade. Não me venham com essa de que fui a exceção. A não ser que vergonha na cara tenha mudado de nome. Não que eu esteja com isso querendo me auto afirmar, mas acredito que ser viciado, marginal, ladrão ou criminoso relaciona-se mais ao caráter da pessoa, que já nasce com ele. Que ninguém duvide disso nem queira inventar fórmulas milagrosas para mudá-lo, porque, além de não resolver o problema, vai criar ainda mais deveres e obrigações para os pais cumprirem, na maioria das vezes, sem poder reverter. Hoje em dia, todos trabalham. Marido e mulher, sem exceção, e, se orientados a agirem no intuito de corrigir o incorrigível, irão se desdobrar tanto, entrando de cabeça num poço totalmente sem fundo, e dando um verdadeiro furo na água - tarefa impossível. Infelizmente. Vão acabar se machucando tanto, se expondo a um ridículo tão grande, que pode muito bem ser evitado. Que me perdoem os partidários de formulas corretivas milagrosas. - pura ilusão. Digo isso porque presenciei pais serem humilhados pelos filhos na frente dos colegas, que, sem jogo de cintura suficiente, e querendo mostrar que aquilo tudo era normal, deixaram-se ser rebaixado pelos seus filhos a tal ponto, que me deu vontade de sair dando porrada – perdoem o palavreado – tanto no filho como em seus amigos, obrigando-os a pedir perdão de joelhos para os pais, numa tentativa de reverter a humilhação que haviam passado. Só não o fiz porque seria bem capaz dos pais se virarem contra mim e ainda dizerem que “não era o filho deles que estava falando, mas as drogas”, como costumam dizer os incautos. O pior de tudo isso é que é voz corrente – virou moda – atribuir a culpa dos atos praticados pelos ladrões, tarados, estupradores, assassinos, espancadores de mulheres, bem como agressões físicas, ao fato de o indivíduo estar drogado ou alcoolizado. Querem, tapando o sol com peneira, isentá-los de culpa, ou seja, inocentá-los. Pelo andar da carruagem, o destino final que querem nos fazer chegar é o seguinte: o indivíduo que pratica o delito é inocente. O réu, ou culpado, como queiram, são as drogas ou bebidas que invadiram o indivíduo, coitadinho. Portanto, se prenderem o indivíduo, estarão praticado uma injustiça muito grande, e isso não é coisa que se faça com um inocente!... Não estão vendo que “ele é uma vítima?” Devemos pedir desculpas a eles por estarem nos matando, roubando, estuprando, etc., afinal, é das “drogas”, não deles, a culpa, não é mesmo?... Para mim, isso é conversa de doido, - mas tem sua lógica.














CAPÍTULO V
Nasce o artista
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Um dia, o Cézar, um amigo, pediu-me para acompanhá-lo até sua casa, onde iria pôr ou trocar uma gravata, não lembro exatamente. Lá chegando, mostrou-me, diante do portão de sua casa, um senhor que seria fiscal de feiras livres e também compositor, o qual se apresentou a mim muito educadamente, dizendo se chamar Américo de Campos. Nesse pouco tempo em que eu esperava o Cézar, o senhor Américo citou várias composições suas já gravadas por artistas famosos. Fiquei de queixo caído. Entre tantas composições, cantarolou uma que havia feito para os Demônios da Garoa, antes mesmo de lhes ser oferecida para gravação. Seu título: Promessa de Jacó. Um trecho da letra: “Jacó, a senhor me prometéu uma gravata e até hoje inda não déu. Faz trinta anos que isso se passar, e até hoje o gravata não chegar.” Depois disso, a composição demorou mais de três anos para ser gravada pelo grupo.  Em tom de conversa, disse-lhe que eu era meio metido a compor e cantarolar também, mas nunca tinha imaginado fazê-lo profissionalmente, pois, para tanto, eu imaginava que teria que haver um padrinho muito bem relacionado no meio artístico e, no momento, eu só conhecia o Luiz Merllo, técnico da Rádio Nacional. Foi então que ele se virou pra mim e disse: “Pois então já não falta mais nada. Você acaba de conhecer o seu padrinho”. Estendendo novamente a sua mão em minha direção, repetiu: “Muito prazer, Américo de Campos, um seu criado e seu padrinho a seu dispor”. Abraçou-me, deu-me um cartão dele e me convidou a procurá-lo qualquer dia para que a gente se conhecesse melhor. Indicou-me qual era sua casa. Confesso que fiquei entusiasmadíssimo com o que eu havia acabado de presenciar. Coisas assim, eu sabia que só aconteciam em filmes. Mas não o procurei, pois imaginei que aquele momento não fora mais do que a apresentação de uma pessoa educada, dirigindo-se a outra, procurando não ferir sua susceptibilidade, nada mais. Dias depois, conversando lá no clube com o Luiz Merllo, contei-lhe o ocorrido. Ele me disse que conhecia muito o senhor Américo e sabia de algumas composições suas, feitas em época de carnaval. Também me informou que o compositor era bem-relacionado e respeitado no meio artístico. No entanto, Luiz Merllo mostrou-se surpreso por saber que eu cantava e compunha. Recomendou-me, então, um programa infantil aos domingos, às sete horas, na Rádio Nacional. Ele iria me apresentar ao Aranda e lhe dizer para que me deixasse cantar lá. Topei a idéia e, todos os domingos, cantava uma música. Como havia um contrabaixo sempre ali no palco, sem ninguém que o tocasse, às vezes, eu arriscava ajudar nos acompanhamentos dos participantes (só amadores), dando uma de contrabaixista.
Por estar sempre entrando e saindo dos bastidores da emissora, notei uma escalação de artistas, exposta em um quadro pendurado na parede de um dos corredores internos, que me chamou a atenção. Havia a relação de todos os programas e, em cada programa, os artistas selecionados. Lembro-me de alguns dos nomes: Ronald Golias, Jose Mizziara, Raquel Martins, Canarinho, Iara Lins, Luiz Pínni, Eloísa Mafalda, Borges de Barros, Simplício, Chocolate, Moacir Franco, Sílvio Santos, Carlos Alberto de Nóbrega, Barnabé escalados para participar do programa Manoel de Nóbrega, cuja apresentação era diária, diretamente do palco da Rádio Nacional de São Paulo, na Rua Sebastião Pereira. Ao lado dessa escalação, havia outra relação de chamadas com o título: Teatro Experimental – produtor: Luiz Tito. Como não vi nenhuma seleção de artistas, perguntei a um indivíduo que também estava lendo o quadro de chamadas por que não havia nome dos artistas daquele programa. Ele me respondeu que aquele era um programa para testar e ensinar iniciantes no teatro, rádio, televisão, etc. Curioso, perguntei-lhe onde e quando teriam início aqueles testes. “Dentro de uns 20 minutos, ali naquele estúdio”, respondeu-me, apontando uma sala. “Se você quiser participar, é só aguardar, como eu”. Como era exatamente isso que eu queria, já procurei saber seu nome. Ele se apresentou com o nome de Nelson Bueno. Disse-me também que estava tentando ver se ingressava na carreira de ator por meio daquele programa experimental. Era o único meio de começar a carreira de que ele tinha conhecimento. Nesse meio tempo, foram surgindo mais alguns interessados em participar do programa. Dentre eles estavam Cláudio Marzo, Rafael Loduca, Florinda, Wilson Marcos, José Oscar, Denise Dumond, etc. Dada nossa convivência quase diária, participando de uma figuração ou outra, aflorou em nós uma amizade desinteressada e de ajuda mútua, muito bonita. Poucos frutos em verdade vingaram. Mas de uma qualidade incomum, por exemplo, Cláudio Marzo, na época, o preferido do idealizador do programa e produtor Luiz Tito, que o lapidou para ser um galã. Mais tarde, Marzo brilhou como uma estrela de primeira grandeza.
Naqueles tempos, o Canal 5 e a Rádio Nacional pertenciam às Organizações Victor Costa e contavam com um elenco de produtores invejáveis. Jaci Campos, com sua famosa Câmera 1, Valter Avancini, que um dia me disse com todas as letras que eu jamais seria um ator, devido a minha voz ser muito rouca, e outra dupla de produtores, Leonardo de Castro e Roberto Silveira, que produziam um programa de muita audiência de nome “A noite é de Garbo”, além de Vicente Cesso, etc. Os galãs do Canal 5, que eu lembre, eram Edson França e Walter Foster, famoso por sua conversa de meio-dia, sem contar com o inigualável Rogério Cardoso, que até me inspirou a produzir um programa tendo-o como protagonista. Nunca, no entanto, atrevi-me a lhe contar, receoso de não ser bem recebido, escaldado que eu estava do Avancini. Como diretor de estúdio era o Régis Cardoso, não tinha pra mais ninguém. Mas como diretor de TV, o Álvaro Moia arrasava. Quem estava praticamente iniciando na carreira, na contra-regragem, naquela época era o Valentino Guzo, um amigão. Um dos fatos pitorescos que aconteceram nesse período foi uma simulação em que eu e outros figurantes, vestidos de “cossacos”, deveríamos ficar dentro de algumas tendas de lona. O produtor, Leonardo de Castro, verificando se estávamos em nossas posições, gritou em alto e bom som: “Não quero nenhum cossaco de fora.” O riso tomou conta do estúdio de tal maneira, que ele próprio desculpou-se do ocorrido, valorizando-o ainda mais. Em outra ocasião eu tinha que fingir ser um morto, velado em cima de uma mesa. No papel de viúva, Rachel Martins, que deveria debruçar-se aos prantos sobre mim. Como não houvera ensaio para a cena, quando ela caiu em cima de mim, gritando e chorando, não agüentei a palhaçada e comecei a rir. Ela, muito profissional, aproveitou o riso em meu rosto para dizer, chorando: “Coitadinho do meu marido (soluço), morreu rindo (soluço).” Aí, ninguém conseguiu segurar o riso. Tudo isso sendo levado ao ar pela TV Canal 5. Também participei de um programa transmitido aos sábados, na hora do almoço, com produção, direção e apresentação de Borges de Barros, denominado; “Seu Borges é um Caso de Polícia”. Algumas vezes, até ajudei a produzir essa atração. Tratava-se de uma delegacia em que tudo de absurdo e engraçado acontecia, com as trapalhadas que o comediante Borges de Barros fazia. Para conciliar minhas idas e vindas a fim de fazer essas atuações como “extra”, teria que haver alguém que custeasse minhas despesas essenciais, condução, alimentação, etc. Como eu não tinha ninguém por mim, eu passava no foto Schimidt, e o Eduardo separava uns negativos – os mais difíceis, claro – para eu retocar. Ele adorava isso, pois era serviço bom e garantido. Assim, eu defendia minhas despesas só com algumas horas de trabalho e sem dever favor ou obrigação a ninguém. Por essa razão, eu pouco dependia da pensão, no tocante à alimentação (que, vamos combinar, era muito ruim). Por não poder chegar exatamente nos horários pré-determinados de almoço ou jantar – em virtude dos meus afazeres diversos – quando chegava, mal havia arroz e feijão, que grudava no fundo da panela, de tão sem caldo e frio. Acabava que eu às vezes comia arroz puro – quando comia.
Em um dos intervalos de ensaios para um episódio em que eu, caracterizado de “negrinho”, encerraria a cena chorando e pedindo ajuda pro sinhô Luiz Gama, interpretado por Borges de Barros, em trajes da época da escravidão, fui até uma lanchonete ao lado do Canal-5 tomar um refrigerante e vi o compositor Jorge Costa, batendo com a mão um pandeiro e cantarolando uma marchinha de carnaval que havia acabado de compor. Quem lhe fazia coro, também batendo no balcão da lanchonete, simulando o acompanhamento de um bumbo, era nada menos que Américo de Campos. Ao me ver entrar, parou de fazer batucada no balcão e se dirigiu a mim, sorridente. Retribuí a efusividade abraçando-o e o saudando. Entusiasmado, com sua mão em meu ombro, Américo apresentou-me para todos em volta, dizendo ser meu padrinho artístico e afirmando que eu iria lançar brevemente um rock, que seria o maior sucesso. Aquilo para mim foi uma surpresa, achei que não passava de mais uma gentileza do Américo de Campos para comigo. Mas estava totalmente enganado. Falando um pouco baixo em minha direção, ele me disse. “Onde você esteve todo esse tempo?” Respondi: “Por aí, lá no Silva Telles, no Foto Schimidt, aqui no Canal 5, e você?”, ao que ele retrucou: “Arrumei um contrato para você gravar na Gravadora Todamérica e estava a sua procura todo esse tempo. Você disse que iria me procurar, mas não apareceu. Eu já estava por desistir e ir pedir desculpas à família Rozemblite, donos da Gravadora Todamérica, onde consegui um contrato pra você gravar um disco 78 RPM”. Nesse instante eu lhe disse que só não o procurei porque pensei que aquela nossa apresentação, na frente da casa do Cézar, não tivesse passado de uma gentileza de sua parte, e não seria justo ir incomodá-lo em sua casa. “Incomodar-me? Sua presença nunca será um incômodo pra mim. Sou seu padrinho artístico e procurei fazer o que um padrinho artístico deve fazer. Projetar seu afilhado. Nada melhor para isso que a gravação de um disco profissional. Portanto, o primeiro passo será a assinatura do contrato com a gravadora. Hoje mesmo eu irei até lá combinar dia e hora que você deverá comparecer para que os fotógrafos possam registrar o ato da assinatura do contrato de gravação do disco.
Marcado o dia, no início da década de 60, mais precisamente em 1961, lá estávamos nós para sacramentar o que naquele tempo era tido como que um fenômeno: um contrato com uma gravadora de discos profissional. A família Rozemblite, pai e filho, tratou-me com todas as honras que um artista de primeira grandeza poderia receber. Confesso que fiquei até constrangido com tanto carinho e atenção que recebi de sua parte. Ficou patente que todo aquele tratamento que recebi deveu-se principalmente ao prestígio que Américo de Campos tinha com a família Rozemblite. Após todo aquele espalhafato em torno da assinatura do meu contrato com a gravadora Todamérica e os senhores Rozemblite tecerem um pequeno discurso de boas vindas para mim, o filho passou-me o endereço de quem iria fazer os arranjos e acompanhamentos de meu primeiro disco. Seu nome? Nada menos que Poli. Para que se tenha uma idéia do que representava aquele nome, pura e simplesmente estava em primeiro lugar nas paradas de sucesso de todo o Brasil com um disco de doze músicas tocadas por ele com guitarra e guitarra havaiana. Todos os instrumentais que fizeram parte de suas gravações foram executados também por ele. Não havia evento sem que se ouvissem as músicas do Poli tocando de fundo. Quando cheguei a sua casa, após me identificarem para ele, Poli conduziu-me para um quarto que usava para fazer seus arranjos. Pegou um violão e pediu que eu cantasse para sentir como era a melodia para a qual ele faria os arranjos. Pedi-lhe que me desse o violão, pois eu teria mais facilidade de mostrar a melodia e o ritmo, uma vez que as composições eram de minha autoria. Repeti umas cinco ou seis vezes as músicas quando ele me disse que era o suficiente e que, por enquanto, estava dispensado. Pediu-me ainda que aguardasse uns dias, e a gravadora manteria contato comigo. Antes de ir embora, pedi a ele que tocasse pelo menos um pouquinho um dos sucessos de seu disco. Ele me pegou pela mão, levou-me até uma janela do quarto e, colocando minha cabeça para fora, disse-me: “Ouça.” Foi então que percebi que seu vizinho estava com o rádio ligado e era exatamente sua música sendo tocada, ao que ele me falou: “Não é bem melhor ouvir no rádio?” Junto com o rádio ele tocou um pouco no violão, exatamente igual.  Tive a impressão de que ele estivesse dentro do rádio. Agradeci pela atenção que me foi dada, despedi-me e só fui vê-lo novamente, após uma semana, já na gravação. Poli estava sozinho num estúdio, que considerei enorme, talvez porque nunca havia entrado em um estúdio de gravação de disco profissional. Fiquei com Américo de Campos, o filho do senhor Rozemblite e o técnico de som, presenciando Poli acabar de gravar alguns toques complementares de guitarra, terminando assim o playback para que eu pudesse colocar a voz em cima. Quando terminou de gravar com sua guitarra, subiu até onde estávamos, cumprimentou-nos, virou-se para mim e disse: “Agora, o restante é com você, sucesso!”, dando-me alguns tapinhas nas costas. Quando ele foi embora, perguntei ao técnico se os outros músicos que haviam gravado meu playback tinham ido fazia muito tempo, ao que ele me respondeu que eu havia acabado de me despedir de todos ao mesmo tempo ao apertar a mão de Poli, ou seja, o músico tocou todos os instrumentos do meu playback. Desci ao estúdio. Em menos de uma hora, eu já havia colocado voz nas duas músicas, que se chamavam “Seu Delegado” e “Água de Cheiro”, ambas de minha autoria. Em comum acordo, Américo de Campos, senhor Rozemblite e o técnico decidiram que eu deveria ter como nome artístico Joe Primo. Mais uma vez concordei com meus produtores. A partir dali, a fita gravada deveria passar por mixagem, em seguida, seguir para a fábrica para prensagem. A primeira edição foi de dois mil discos, com distribuição feita pela Continental. A divulgação da produção correu praticamente por minha conta e do Américo de Campos, que acionou seus colegas de rádio ligados à técnica de som e discotecários para que meu 78 RPM fosse tocado em suas programações.
Naquela época, para ser sucesso, uma música teria que entrar na parada de sucessos era transmitida pela Rádio Nacional todos os dias às 11 horas da manhã. O locutor, de nome Hélio de Alencar, apresentador oficial, anunciava as cinco gravações mais vendidas da rede de Lojas Assumpção, espalhadas por toda São Paulo. Quando chegava a hora do primeiro colocado em vendas daquele dia, o apresentador, com uma voz inconfundível, causando o maior frisson e fazendo o maior suspense, dizia: “O programa Paraaada de Sucesso neste momento passa a apresentar (pausa, enquanto tocava ao fundo um efeito especial caracterizando um momento apoteótico) o sucessoooo do dia. O disco 78 rotações mais vendido ontem em todas as lojas Assumpção espalhadas por toda São Paulo... o disco mais vendido foi...” Nesse momento, já começava tocando minha música, e o locutor dizia: “Exatamente ele, Joe Primo, cantandoooo 'Ela me fez de Limão'”. Em um intervalo de um mês, meu disco conseguiu ser o sucesso da Parada de Sucessos exatamente por seis dias alternadamente. Conseqüentemente, alguns discotecários de outras emissoras de rádio passaram a incluí-lo em suas programações diárias. Quando, por casualidade, eu me ouvia cantando nas rádios “Ela me fez de Limão” ou “Água de Cheiro”, minha alegria era tão grande, que me dava vontade de dizer pra quem estivesse ao meu lado naquele instante que aquele cantando na rádio era eu, era eu... Para ajudar na divulgação do disco, eu percorria quase o dia todo, dentro dos meus limites monetários, os programas de disc-jóqueis em evidência naquela época. Além de dar às vezes uma pequena entrevista e, ao mesmo tempo apresentar e tocar meu disco nos programas, acabava fazendo amizade com os apresentadores, sem os quais muitos artistas deixam de aparecer na mídia e, conseqüentemente, caem no esquecimento. Relações públicas são indispensáveis em todos os segmentos. Desses apresentadores, que muito colaboraram nesse meu primeiro lançamento no mundo fonográfico, alguns nomes foram fundamentais. Disc-jóqueis e discotecários programadores, bem como técnicos de som, alavancaram sobremaneira minha ascensão como cantor no meio artístico. Não utilizarei uma ordem de valores aqui para não cometer nenhuma injustiça. Imperdoável seria não reconhecer o apoio de Luiz Merllo, técnico de som. Ele nunca me disse nada, mas tenho certeza absoluta de que, sempre que pôde, colocou meu disco para tocar na Rádio Nacional de São Paulo. Certa vez, no Clube Silva Telles, perguntei-lhe o que achava da minha gravação. Categórico, Merllo afirmou: “O seu disco? Não vá ficar mascarado não, mas é sucesso na certa. Pode ficar escutando as rádios, principalmente a Nacional.” Pra bom entendedor...
Sebastião Ferreira da Silva, um dos discotecários e técnico também da Rádio Nacional, foi outro que também me ajudou muito. Ele tinha muitas versões de sua autoria. Nem por isso, deixava de me dar uma colher de chá, preterindo seu próprio trabalho e deixando de executar uma de suas versões gravadas por artistas famosos da época, para tocar minha música. Dividia o pão. José Russo, mais um que me auxiliou demais. Fez o primeiro elogio que recebi numa revista, a “Melodia”: “Joe Primo – protótipo do “rockista” nato, com um futuro promissor a sua frente, parabéns.” Além de escrever para esse veículo, Russo apresentava programas musicais. Divulgava minha gravação, tocando meu disco, e tecia sempre alguns comentários elogiosos. Na Rádio Record de São Paulo, Randal Juliano, famoso apresentador de televisão, principalmente de um programa que era a coqueluche de todos os sábados no horário nobre (20 horas) pela “TV Record (canal 7), de nome Astros do Disco, era também apresentador de um programa de rádio todos os dias pela manhã pela Jovem Pan”. Nesse programa, dava uma colher de chá para os estreantes no mundo fonográfico, como era o meu caso, tocando os discos e tecendo comentários. Também não posso deixar de citar o Osvaldo Audi, para quem não havia tempo quente em matéria de executar meu disco. Ele tinha um programa de lançamentos na Rádio Nove de Julho, e o assédio de artistas, que o procuravam para que pudessem tocar suas gravações, era uma coisa de louco. Mas Audi sempre dava um jeitinho de agradar a todos, encurtando as entrevistas e tocando mais músicas. Como não podia deixar de acontecer, Joe Primo, interpretando, de autoria de Américo de Campos e Teixeira Filho a música, “Ela me fez de Limão”, entrava novamente no ar. Uma vez ou outra, para variar um pouco, era tocado o verso do meu disco, ou seja, “Água de Cheiro” de Aguiar Rodrigues e Joe Primo. Nesse programa, ainda como ilustres desconhecidos, como eu, com seu disco sendo lançado e necessitando ser divulgado nas rádios, também se encontravam, às vezes: Roberto Carlos, Waldick Soriano, Carmem Silva, Demétrius, Roney Cord, Althemar Dutra, Clara Nunes, enfim, vários nomes que ficaram famosos e nasceram praticamente nessa época. Como existiam vários programas especializados em lançamentos de discos, nós nos cruzávamos quase diariamente.
Outro programa por demais concorrido em se tratando de lançamentos era o programa Barros de Alencar, na Rádio Tupi de São Paulo, no Bairro do Sumaré. Era comum a coincidência na programação das duas atrações, a de Barros de Alencar e a de Audi. Ouviam-se praticamente as mesmas músicas nos dois programas, entre os quais havia um intervalo de três horas. Como a distância entre as duas emissoras era grande, o artista recém-lançado que não tivesse carro teria que pegar dois ônibus se quisesse participar dos dois programas. O desejo de vencer suplantava a distância. O que acontecia com o artista ao ser lançado era o seguinte: quem não tivesse o suporte da gravadora para custear uma divulgação à altura da concorrência e dependesse única e exclusivamente de seu poder monetário para arcar com as despesas de locomoção e alimentação – como era o meu caso –, dificilmente conseguiria fazer seu disco tocar nas rádios o suficiente para que o público pudesse assimilar na íntegra a letra, bem como a melodia e nome do disco, a ponto de se interessar por ele e comprá-lo. Também não adiantava fazer das tripas coração, no sentido de fazer tocar seu disco nas rádios, se a gravadora não tivesse um corpo de distribuidores competentes para colocar o trabalho (disco) nas lojas, juntamente com o início da divulgação nas rádios. Aconteceu naquela época um fato inusitado. Naquele sufoco de início de carreira, comentou-se muito entre os que juntamente com Roberto Carlos batalhavam para fazer tocar seus discos em programas de lançamentos, que um dia Audi emprestou uns trocados para Roberto lanchar. Num futuro bem próximo, Roberto fez muito sucesso em vendas de discos e shows, ganhou tanto dinheiro, que tanto ele se sentia constrangido de pagar aquela dívida (por ser tão pequena) quanto Audi se sentia da mesma forma em cobrá-lo. A solução foi deixar ficar como fato pitoresco.
Voltando a Barros de Alencar, seu programa era líder de audiência no horário das 10 da manhã. Quem conseguisse encaixar seu disco na programação, na certa, seria ouvido por metade de São Paulo ou mais. Independentemente de uma vez ou outra eu não conseguir chegar no horário em que seu programa estivesse no ar, por ser ao vivo, eu ouvia minha música ser tocada. Isso só era possível por se tratar de o Barros de Alencar ser um sujeito muito humano. Com esse ato, demonstrava ter reconhecimento do esforço que fazíamos para ir ao seu programa, convicto de que, se não chegávamos a tempo, era por motivos exclusivamente financeiros. Chego a imaginar que talvez eu não tenha sabido agradecer à altura pelo favor recebido. Não custa agradecer-lhe mais uma vez através de um “Muito obrigado, Barros de Alencar!” Que você tenha sempre alguém de braços abertos para ajudá-lo se um dia precisar. Prosseguindo com a maratona da divulgação do disco, após sair do programa do Barros de Alencar, fui convidado para cantar no “Almoço com as Estrelas”, comandado por Airton e Lolita Rodrigues, diretamente da PRF-3 TV Tupi, canal 3, aos sábados, no Sumaré. Radiante de alegria pelo convite, prossegui com destino, dessa vez, à Rádio Bandeirantes, instalada na Rua Paula Souza. Lembro não ter sido tão fácil adentrar os estúdios e, principalmente, falar com Enzo de Almeida Passos, um dos reis de audiência do horário, com um programa chamado “Telefone Pedindo Bis”. Era uma alegre seqüência de sucessos musicais, em que você ouvia sua melodia predileta e podia pedir bis quantas vezes quisesse, pelo telefone, para eleger sua melodia favorita. Logo depois, às 14 horas, você a ouviria no “Atendendo ao Ouvinte”, que reprisava as músicas preferidas de todos os que telefonaram, elegendo assim a campeã do dia. Quando minha gravação era escalada para ser tocada e, automaticamente, solicitada pelos ouvintes, eu reunia alguns amigos, e dava-lhe telefonar para tentar eleger minha música como campeã do dia. Confesso que não era fácil, porque o programa não era de lançamentos, mas de sucessos. Mesmo sem ter conseguido eleger minha música como campeã, para mim foi bom demais ter participado, porque acabei conhecendo Enzo de Almeida Passos, a quem valeu muito conhecer nessa minha fase de início de carreira artística.
Trabalhando nos meios de comunicação, estando em todo e qualquer lugar onde, de uma forma ou de outra, meu disco fosse tocado, voltei à Rádio Nacional de São Paulo para participar de outro programa de lançamentos musicais intitulado “Ritmos Para a Juventude”, cujo apresentador chamava-se Antônio Aguilar. Quando entrei nos estúdios, algumas fãs que se encontravam lá dentro. Reconheceram-me e, como sempre acontece quando elas vêem um artista, deram gritinhos característicos, abraçando-me e pedindo autógrafos, o que me deixou com mais moral perante o apresentador Antônio Aguilar, que até então ainda nem tinha ouvido falar no meu nome. Radialista e jornalista experiente que era, não perdeu a oportunidade dos gritinhos das fãs para reportar aos ouvintes de seu programa, que estava no ar, o porquê daquela euforia, dizendo: “Acaba de entrar nos nossos estúdios, ele... vocês estão ouvindo ao fundo o alvoroço das fãs... está um pouco difícil para ele conseguir chegar até aqui... vocês vão ouvi-lo e reconhecê-lo, porque ele mesmo vai se apresentar.” Passou-me o microfone, e eu disse: “Quem vos fala é Joe Primo. É com muito prazer que estou aqui, para participar do programa do nosso amigo Antônio Aguilar, que gentilmente convidou-me para estar com vocês”. O apresentador, mesmo sabendo que não havia me convidado, prosseguiu: “Gosto de fazer dessas surpresas para os nossos ouvintes, e é por essa razão que nossa audiência aumenta a cada dia”, ao que eu retruquei: “Aguilar, meu amigo, você tem que ampliar seu estúdio ou fazer seu programa diretamente do auditório da Rádio Nacional para dar chances a mais fãs poderem conviver com seus artistas”. Ele prosseguiu o diálogo, dizendo: “Joe Primo, meu amigo, deixe estar que vou pensar seriamente nesse assunto.” Após terminar o programa ele me disse: “Obrigado pelo improviso, bem como a sugestão que você deu com o programa no ar. Mas, quanto a ampliar o estúdio, impossível. Fazer o programa diretamente do auditório depende de muitos fatores. O primeiro é a verba de patrocínio, sem a qual nada se faz. O segundo: se o programa for no palco, as fãs vão querer ouvir seus cantores cantarem ao vivo, o que acarretaria a necessidade de um conjunto musical especializado em ritmos próprios da juventude para acompanhar os artistas. Sem contar que os artistas que cantam rock no momento são muito poucos. Mesmo assim, é quase certo que iriam querer ganhar algum cachê para participar. Enfim, não é fácil. Além do mais, eu ainda teria de ter poder de convencimento junto ao Abreu (diretor-geral da Rádio Nacional), para conseguir a liberação do auditório e levar avante essa empreitada. Sozinho, é quase impossível.” Depois de ouvi-lo atentamente, disse-lhe: “Aguilar, se os problemas forem esses, eu tenho a solução para quase todos. Você não ouviu falar do meu conjunto de rock (disse-lhe o nome de um conjunto americano, famoso na época)? Pois esse grupo é meu. Você já ouviu falar de Bobby De Carlo? Pois ele, além de cantar solo, faz parte do meu conjunto.” Aguilar, surpreso: “Sim, mas, para fazer um programa diretamente do auditório, haja atrações capazes de preencher o tempo mínimo, que, acredito, deva ser de uma hora.” Respondi: “Deixa comigo. Eu e meu conjunto faremos pela manhã uns testes com alguns cantores ou cantoras amadores, aos quais você fará uma chamada pelo seu programa. Os que forem aprovados serão escalados para participar, intercalando-se comigo, cantando, juntamente com o Bobby De Carlo, e meu conjunto tocando. Você verá que vai haver cantores profissionais que, ao perceberem o sucesso do programa no auditório, farão questão de participar sem sequer pensar em cachê.”